Idealizadora do projeto “As Vanessas” lança curta; assista

“Procuram-se Vanessas Pra Falar de Amor”. Se você mora em São Paulo, Porto Alegre, Florianópolis, Goiânia, Brasília ou Rio de Janeiro, é bem possível que tenha visto esse cartaz e se perguntado quem atenderia ao telefone colocado logo abaixo dessa frase.

Do outro lado da linha estava Maria Carmencita Job, idealizadora do projeto transmídia As Vanessas, que inclui longa-metragem, série, websérie, livro e aplicativo. O público já pode ter o primeiro contato com o trabalho graças ao curta “N.” De Vanessa, dirigido por Carmencita e lançado no mês passado durante o Seminário “Uma Revolução Particular”, promovido pelo Projeto do Observatório da Prostituição da Universidade Federeal do Rio de Janeiro.

Contrariando o modelo tradicional de lançamento (primeiro festivais, depois o grande público), o curta também foi lançado na internet. Durante 30 dias (até 18/01) é possível assistir, gratuitamente, ao filme sobre Nicole, 19, uma ex-garota de programa que fala sobre muitas coisas, mas sobretudo sobre o amor.

É esse, afinal, o foco de Carmencita: dar voz às mulheres – profissionais do sexo ou não. “O projeto como um todo fala de sororidade, integração, acolhe diferenças. Cada categoria do guarda-chuva dará oportunidade de aprofundarmos escalas próprias da ampla pesquisa realizada”, afirma.

Assista ao curta “N”. De Vanessa:

Assim, o longa “Procuram-se Vanessas Pra Falar de Amor” contará a história de quatro prostitutas em Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia, mostrando seus espaços de programas e relações.

A série de TV promoverá uma troca de papéis: garotas de programa falarão sobre cotidiano, maternidade e filhos, enquanto mulheres de outras profissões falarão sobre sexualidade, prazer e desejo. A websérie será o making of do programa, mostrando a jornada da equipe durante o projeto. O livro reunirá quatro contos de ficção erótica, podendo cruzar histórias reais e imaginárias de mulheres ouvidas em campo. E o aplicativo, ainda em construção, “encontra o desejo de muitas mulheres e integra histórias reais femininas.”

Nascida em São Vicente, no litoral de São Paulo, Carmencita se mudou para Porto Alegre aos 5 anos e ficou por lá até os 17, quando se mudou para Florianópolis. Estudou antropologia e psicanálise e trabalhou com análise cultural para marcas, comunicação e publicidade. O cinema, ela diz, “sempre existiu” em sua vida, e desde criança Carmencita gostava de escrever e imaginar cenas.

Começou a fazer documentários muito influenciada pelo cineasta Eduardo Coutinho, e hoje mantém uma empresa de pesquisa e análise cultural, o Laboratório de Pesquisa do Comportamento – [Ox]igênio. O novo braço da companhia, dedicado a projetos audiovisuais, se chama “Céu Filmes” e busca incorporar profissionais mulheres em todos os projetos.

Falamos com Carmencita sobre o motivo de contratar mulheres, o andamento de cada projeto do e os bastidores de “N.” De Vanessa.

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“N.” De Vanessa tem equipe inteiramente feminina, algo que você procura fazer na sua empresa. Por quê?
Posso te dizer que me sinto satisfeita com todos os projetos realizados somente com mulheres. Mesmo ouvindo piadinhas do tipo: “Vai colocar só mulheres na equipe? Não vai ficar tão bom, viu? Pois não existem tantas profissionais mulheres boas no cinema”. Mal sabiam “eles” que este sempre foi o meu filtro maior: dar espaço às mulheres no cinema, que, como eu, necessitam transbordar assuntos jamais tocados pelo feminino. E fiz desta parada um desafio. Hoje, mais do que nunca, priorizo mulheres. E se depender de mim, o trabalho vai ficar cada dia mais elaborado e 100% feito por mulheres. Aposto nisso como linguagem. Precisamos nos expressar, e produzir cada vez mais na forma, na quantidade e no mote dos conteúdos. Criando sem medo de ser aceito ou não, daí sim continuaremos a adicionar novas condições, investindo em nossas ideias e problematizando a categoria de N formas. Este é o lugar em que quero chegar. E comigo, levarei mais mulheres, com certeza.

O projeto começou quando você conversou com uma prostituta, Vanessa, após o fim de uma relação. Como foi esse encontro?
Sempre me inquietou muito a ciência das emoções. Quando nova, achava que poderia entendê-las experimentando, depois percebi que minha busca tinha uma coisa intelectual. Achei que na Academia eu poderia encontrar isso, mas mal sabia eu que uma prostituta iria me dar as ferramentas emocionais para preencher uma grande busca. Foi a partir deste encontro com a Vanessa que pude adentrar no paraíso real das emoções. Fui acometida por uma espécie de teoria quântica das relações, com respostas lógicas sobre um mundo forte e humano. E foi daí que nasceu toda esta onda forte de Vanessa, me trazendo à tona de novo. Houve uma reprogramação celular minha, por meio conversas que me traziam respostas às minhas angústias, através de superações pessoais dela – a Vanessa, fazendo com que eu mudasse todo meu modo de olhar as trocas de amor. Ela fez eu me encontrar como mulher contando suas histórias, se disponibilizando em uma escuta atenta e fazendo com que eu a comparasse com o carinho da minha avó.

E como começou a ideia dos cartazes?
Esta onda, que chamo de “As Vanessas”, faz mais sentido hoje em função da primavera feminista que estamos vivendo. Mas, de todo modo, ainda vai ser a última curva a ser integrada de forma concreta ao movimento feminista. Por isso criamos as ações nas ruas, com os cartazes, como modo de aproximar mais mulheres de mundo diferentes. Expor as vozes das Vanessas (mulheres profissionais do sexo ou não), além de ser uma escolha política, foi a forma que encontrei de sobreviver à busca emocional que havia no meu corpo. Percebo, ainda, que precisamos de mais espaços permanentes de condição simétrica para mulheres em sociedade – e a prostituição abarca tudo isso. É só você começar ouvir uma história de vida, e sobretudo de amor de uma prostituta, para que comece a se identificar e perceba seus pontos frágeis.  Tudo isso é uma potência. Tem muito eco. E mexe demais com as mulheres. Daí a necessidade de espalhar esta voz. Mais mulheres precisam escutá-las, para [poder] naturalmente produzir uma nova condição de espaço para o amor e para a imagem do feminino. O cinema dá conta deste estado pleno e completo, com poesia.

Cena de "N." De VanessaComo você conheceu a Nicole? Ela respondeu aos cartazes?
Não, tudo começou bem antes deles. [A conheci] em campo, em um dia de observação. Cheguei em uma das ruas mais movimentada da prostituição em Porto Alegre, a qual eu sempre ia, e lá estava ela: meiga, natural e cheia de clientes. Não parava quase nunca, se sobressaía no meio de todas as mulheres. Ela era muito procurada. Tinha uma desenvoltura, uma energia que se expandia no espaço onde ela ficava. Lembro que na primeira vez que a vi, fiquei horas só observando. Depois, fomos conversando e trocamos contatos.

Por que você quis fazer um curta inteiramente sobre ela, e não apenas integrar a história ao projeto?
Não era para ser um curta-metragem, mas a história da Nicole acolhia mais que uma entrevista. Fui selecionada para um painel dentro do seminário da antropologia visual em Maceió, em 2015, com as fotografias de campo das Vanessas, e me perguntaram se eu não tinha nada gravado. Daí pensei: ‘Vou fazer uma entrevista gravada com algumas das meninas e levar para o encontro.’ Só que não havia imaginado que a história iria me escolher. Fui arrebatada pelo aceite da Nicole, depois de duas tentativas frustadas com outras meninas. Nicole não respondeu de primeira: demorou uns dias e eu tinha pouco tempo. Foi quando ela me disse que topava, mas que havia saído da prostituição fazia algumas semanas e estava trabalhando em uma lanchonete. Combinamos uma cerveja no bairro em que moro, conversamos durante quatro horas e saí da entrevista sabendo que não tinha somente a gravação de uma fala. Era um curta  só dela. De uma “N”. De Vanessa. Uma prostituta que se dizia saindo da profissão por causa de um amor. Além de sua fala ser articulada e clara, as histórias eram fantásticas. Naquela mesma noite, fui pra casa, e estruturei o roteiro de gravação, no outro dia liguei para as meninas da equipe e segunda-feira gravamos.

Foi fácil conseguir que ela contasse sua história?
Foi. Estávamos todas muito à vontade. A química aconteceu de cara. Ela estava mega disponível pra falar. Dizia que fazia aquilo por mim, pela mudança que acreditava provocar em mais mulheres com sua história. Sabia do poder que ela exercia. Um menina de coragem, de pulso firme. Se sentia empoderada com a fala que saía do seu corpo. Era um eco pra ela e uma escuta dedicada nossa também. Foi bonito.

Vocês inverteram o processo “normal” de lançamento, colocando o curta primeiro na internet. Por quê?
Sim, invertemos. E posso te dizer que estou bem mais aliviada. Quero fazer cinema para as pessoas. Para conviver e estar, para ficar junto. Não quero praticar a seleção. Quero afetar as pessoas no seu cotidiano. Levar a leitura de um mundo não percebido pra superfície e encontrar um mar de gente. Talvez, aí, possamos mudar as coisas: apostando na poesia e na subjetividade aplicada pra ser consumida pela massa. Quanto mais pessoas endossarem o tema, mais ele ganha presença. E todas as mulheres saem ganhando em empatia e massa crítica. Desde o começo eu pensava sobre para quem eu estava fazendo este filme. Se era para as mulheres, que razão eu teria para deixar o filme para poucos e depois, bem depois, para as mulheres? Daí a Ana Luisa Gomes [do site Andarilha] queria colocar o curta junto da entrevista que fez comigo. Confesso que fiquei preocupada, não sabia se seria o melhor a fazer. Mas de uma coisa eu tinha certeza: os olhos das mulheres profissionais do sexo que haviam visto [o filme] já haviam endossado com os seus olhos marejados, então do que mais precisava? Decidi mostrar para outras tantas mulheres por um tempo limitado, não matando o ineditismo praticado e necessário para alguns festivais.

Quais será o próximo passo para o curta?
Será selecionar com muito cuidado em quais outros locais gostaria de mostrá-lo. Talvez uma intervenção grande e também em festivais que problematizem temáticas sociais e deem vazão ao feminino de forma potente. Quero associar o filme e o projeto todo a lugares dos quais me orgulhe de fato. O filtro tem contato próprio e é neste clima que quero continuar.

Imagem das filmagens de "N." De Vanessa

O projeto inclui diferentes trabalhos. Em que pé eles estão?
Estou articulando um edital que ainda não saiu de Goiânia, e outros editais temáticos para o longa. Tenho algumas ideias para financiamento coletivo e outros meios criativos, como empresas que tem no seu DNA a mulher como presença, promovendo um encontro de investidores diretos. Principalmente para o longa adicionaremos isso com meta, pois é preciso muito dinheiro. O cinema é uma arte elistista, cara, e devemos subverter este processo criando alternativas. A série estará sendo escrita agora no verão, com uma outra amiga roteirista e diretora. A websérie vai ser bem experimental e o livro junta todos os pilares de coleta do projeto. Vai ser o local de maior liberdade. Já tem editora interessada, estão só aguardando. Mas ainda quero estar com o longa mais adiantado para dar conta do livro. O aplicativo é o desdobramento de tudo para experimentação pessoal. Uma intervenção na obra, uma performance feminina coletiva e ativa. Ele inicia junto com a série também. Mas o mais legal de todo este processo é que não descartamos mudanças no caminho. Inclusive acreditamos nelas como propulsoras e revigorantes.

Quantas ligações e emails você acredita ter recebido graças aos cartazes espalhados nas cidades?
Ligacões foram muitas e e-mails já perdi a conta, uns 800, acho. Fora as mensagens de texto e WhatsApp. O cartazes são orgânicos – meses depois, ainda recebo retornos. Quando fazemos uma intervenção na rua, não podemos dimensionar o que irá acontecer, quem será impactado. Teve até ligação de homens procurando um amor verdadeiro e diversas angústias reveladas. Ouvia cada história. Eu também era modificada com tudo aquilo. E acreditava que ali se dava um troca plena – entre escuta, pergunta, atenção e fala. O lance vai para lugares que você jamais pensaria. É tudo muito natural. Vai acontecendo e se multiplicando.

Nesse processo todo de pesquisa e filmagem, em todas essa conversas com mulheres, o que você aprendeu?
Que podemos nos reinventar sempre que sentirmos dor. E se não podemos fazer mais nada com aquele amor que nos mata, a melhor coisa é produzir algo dele. Dali nasce a mudança de toda uma energia, gozando de outras maneiras. No meu caso, vanessando.

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