Glenda Nicácio sobre “Café com Canela” e o Recôncavo: “Cachoeira é plano A, B e C”

Em cartaz nos cinemas, Café com Canela narra o encontro de suas protagonistas: Margarida, professora aposentada que há anos vive em luto por causa da morte do filho; e Violeta, jovem alegre e cheia de vida que mora com o marido e os filhos, cuida da avó e vende coxinhas. Mas há uma terceira protagonista nesta história: Cachoeira, a cidade do interior da Bahia que serviu de cenário para outro encontro além do vivido por Margarida e Violeta.

Foi lá que os diretores de Café com Canela se conheceram. Ambos mineiros, Glenda Nicácio e Ary Rosa chegaram a Cachoeira em 2010 para estudar cinema na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Viraram amigos, abriram a produtora Rosza Filmes e em 2011 começaram a trabalhar juntos em Café com Canela, seu primeiro longa-metragem. Adaptação de um roteiro de curta escrito por Rosa, o filme foi contemplado em um edital de arranjos regionais em 2014 e no ano passado começou em Brasília uma bem-sucedida trajetória em festivais.

Neste mês, Glenda e Ary voltam a Brasília com seu segundo longa-metragem, Ilha, mais uma vez realizado em Cachoeira, e com boa parte da equipe de Café com Canela, que priorizou talentos locais. “Não queríamos trabalhar com profissionais de fora, tanto no elenco quanto na equipe: nossa ideia era fortalecer as pessoas daqui e ter uma equipe-base para futuros trabalhos”, contou Glenda, em entrevista por telefone ao Mulher no Cinema. “Ficar em Cachoeira é nosso plano A, B e C.”

Leia os principais trechos da entrevista:

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O que você encontrou em Cachoeira que te fez decidir ficar ali?
Primeiro, teve o meu próprio encontro com o Ary, um encontro de amizade e partilhamento de vida. Aprendemos a dirigir e a fazer cinema juntos. Cachoeira é um lugar que proporciona encontros, e sinto que aprendi tanto na rua quanto na sala de aula. As conversas se estendem, você pode fazer uma reunião com seu vizinho. Há possibilidades que a cidade grande não oferece – de cuidado, de reparar um pouco mais, de se dedicar aos pequenos momentos. Pessoalmente, houve um reconhecimento: é uma cidade de tradição matriarcal, que tem a questão da mulher negra…são coisas que me tocam.

Você entrou mais em contato com questões relativas às mulheres negras em Cachoeira?
Sim, Cachoeira é uma cidade negra, das que tem mais terreiros por metro quadrado. Há a cultura negra nas festas tradicionais, o sagrado e o profano, estas coisas que a Bahia traz, mas que no Recôncavo são muito potentes. E tudo é muito comum, espalhado: a cultura não é uma caixinha que você frequenta, não está dentro de um teatro. Cachoeira foi importante para me mostrar que o saber popular também é um saber. Sempre perguntam quais foram nossas referências querendo que a gente passe uma lista de filmes e cineastas. E claro que a gente tem referências, mas fizemos o Café tentando nos aproximar das imagens que a gente via no dia a dia. O cotidiano atravessava a nossa vontade de criação.


“Cachoeira foi importante para me mostrar que o saber popular também é um saber. Sempre perguntam quais foram nossas referências querendo que a gente passe uma lista de filmes e cineastas. E claro que a gente tem referências, mas fizemos o ‘Café’ tentando nos aproximar das imagens que a gente via no dia a dia. O cotidiano atravessava a nossa vontade de criação.”


Como chegaram às atrizes que interpretam as protagonistas?
Não queríamos trabalhar com profissionais de fora, tanto no elenco quanto na equipe: nossa ideia era fortalecer as pessoas daqui e ter uma equipe-base para futuros trabalhos. Margarida tem poucas falas no início e é uma pessoa que a gente conhece pelos silêncios, então a atriz tinha de ter experiência. Apareceu o nome da Valdineia Soriano [do Bando de Teatro Olodum], tivemos um encontro muito rápido [e ela foi escalada]. Para a Violeta, fizemos um processo de casting em quatro cidades do Recôncavo e mais Salvador, e depois de rodar muito chegamos à Aline Brunne, que estava ali bem do nosso lado: também era estudante da UFRB, fazia artes visuais, era nossa amiga. Foi gostoso porque ela tinha um super envolvimento com a cidade, já conhecia Cachoeira. E houve uma amizade mesmo entre ela e a Val.

Aline Brunne e Valdineia Soriano em “Café com Canela”

Por que é importante descentralizar a produção de cinema no Brasil?
Acho que para descobrir outras histórias. Há um imaginário já saturado de Brasil, porque se aposta sempre no mesmo ponto de vista. A descentralização traz outras possibilidades, que também nem sei dizer quais são. Pensando na minha realidade, [a descentralização] trouxe desdobramentos no campo do conhecimento. O Café deixou claro para mim que podemos descobrir outras formas de fazer cinema. Algumas lacunas podem seguir uma vida sendo lacunas, mas a descentralização [da produção] te faz criar outras possibilidades e estratégias criativas. Em Cachoeira, os processos de produção não estavam organizados e articulados como a indústria cinematográfica os concebe. Ao mesmo tempo, havia uma vontade e uma necessidade de fazer. Acho que a descentralização oferece essa chance de olhar para si e para o lugar que você está, e a partir disso ir mudando o cinema que você pode fazer. A gente conseguir ir além das regras e do manual do que é fazer cinema que foi passado para a gente na universidade, por exemplo. Acho isso muito produtivo.

Você citou a preocupação em fortalecer os profissionais locais, o que inclusive motivou uma oficina de cenografia e parcerias com uma cooperativa de costureiras que nunca tinha produzido figurino para cinema. A descentralização também ajudaria os profissionais a poder ficar no seu lugar de origem, não?
Sim, é criar equipe. No Festival de Brasília [quando Café com Canela foi exibido] nos perguntaram: “Vocês pretendem ficar em Cachoeira? Vocês acham que vão conseguir?”. E a gente falou: “Ficar em Cachoeira é nosso plano A, B e C.” Criar equipe é sempre uma preocupação, porque a gente depende muito de questões relacionadas às políticas públicas, que estão se desenvolvendo mas não estão totalmente firmadas juridicamente. Sabemos que, pensando em pouca verba e em épocas de crise, os territórios mais prejudicados são o Nordeste e o interior.


“‘Café’ deixou claro para mim que podemos descobrir outras formas de fazer cinema. Algumas lacunas podem seguir uma vida sendo lacunas, mas a descentralização [da produção] te faz criar outras possibilidades e estratégias criativas. Em Cachoeira, os processos de produção não estavam organizados e articulados como a indústria cinematográfica os concebe. Ao mesmo tempo, havia uma vontade e uma necessidade de fazer.”


A Agência Nacional do Cinema (Ancine) divulgou uma pontuação dada aos cineastas com base em desempenho comercial e quantidade de obras, critérios que favorecem aqueles artistas que já têm espaço. O que achou disso?
A gente [ela e Ary Rosa] nem existe dentro dessa tabela. Não temos pontuação, não aparecemos, como a maioria dos realizadores que surgiram agora e vêm de uma outra fase, de um outro Brasil. É meio anacrônico, né? Parece que não acompanha o movimento que está acontecendo, de editais regionais, de produção contemporânea em festivais. Ao mesmo tempo, acredito que precisamos ocupar estes espaços. Sou otimista [quanto ao futuro] por pensar que a Ancine tem mostrado não estar alheia a esses processos todos que estamos vivendo. Tendo a pensar que estas medidas tendem a ser repensadas e reorganizadas. Porque é muito destoante.

Na sua opinião, o que poderia ser feito para ampliar a participação das mulheres negras no cinema brasileiro, principalmente por trás das câmeras?
Penso sempre em políticas públicas, que também têm a ver com autoestima, imaginário, ocupação dos lugares, representação. Por mais que pareça que a gente já esvaziou a palavra representação, ela é muito importante, tem muito efeito. Não foram poucas vezes em que escutei meninas negras falarem: “Nossa, estou começando a aceitar que este é um lugar no qual a gente pode transitar, passear, assumir”. O comitê da Ancine [Comissão de Gênero, Raça e Diversidade, criada no ano passado] é importante, ter dados é fundamental. Porque aí podemos partir do ponto de que temos um problema. É importante que a instituição reconheça. A pesquisa de 2016 [sobre raça no cinema brasileiro] ainda é muito vaga, é apenas o começo. Outras pesquisas precisam ser feitas para a gente se olhar e tentar entender e mapear o problema.

Ary Rosa e Glenda Nicácio, diretores de “Café com Canela” – Foto: Liz Riscado

Seu segundo longa-metragem, Ilha, é uma nova parceria com Ary Rosa e terá sua estreia na edição deste ano do Festival de Brasília, que ocorre este mês. O que pode contar sobre o filme?
Estávamos gravando o Ilha quando participamos do Festival de Brasília no ano passado. Saímos do set para representar o Café e voltamos, o que nos deu muita motivação e força para trabalhar com a mesma equipe, embora menor – eram cerca de 50 pessoas no Café, e no Ilha foram umas 20 e poucas. Há mais segurança, mais tranquilidade em saber com quem você está. É um filme que também fala de um encontro, mas de um encontro em tempos duros. Conta a história de Emerson, que vive em uma ilha e sequestra um cineasta, Henrique, para que faça um filme sobre a vida dele.

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
Diria para, antes de tudo, terem pensamento de produtora. Não importa o que você queira fazer dentro do cinema, é importante ter pensamento de produção. Quando começamos como diretoras e roteiristas, não temos uma produtora particular para a qual podemos dizer: vá captar e quando conseguir [o dinheiro] você me chama. Temos que correr atrás de tudo. Às vezes a gente fica correndo muito atrás da história e se esquece que depende muito de grana, de orçamento, de financiamento. As políticas públicas têm aparecido cada vez mais como possibilidade, pelo menos para mim, então é importante ter o pensamento de produtora junto com o pensamento artístico. E confiar, encontrar os seus e as suas. Não se faz cinema sozinha, e encontrar os seus é básico.


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Claudio Pedroso/Agência Foto

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