Gabriela Amaral Almeida: “A perseguição vai gerar muita narrativa”

Menos de um ano após estrear no longa-metragem com o ótimo O Animal Cordial (2018), a diretora Gabriela Amaral Almeida está de volta aos cinemas com A Sombra do PaiEste segundo projeto foi, na verdade, o primeiro a ser escrito pela cineasta, que idealizou o filme em 2009 e o desenvolveu ao longo de anos, em paralelo a seus curtas-metragens e aos roteiros que escreveu para outros diretores.

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No centro da trama está Dalva (Nina Medeiros), uma criança forçada pelas circunstâncias a virar o “adulto da casa”: a mãe morreu; o pai, Jorge (Júlio Machado), vive mas quase não vive, sufocado pelo luto, o trabalho e as pressões do dia a dia; e a tia, que funcionava como espécie de elo entre os dois, decide se casar e morar com o marido. Sozinha durante longos períodos em sua casa na periferia de São Paulo, Dalva cria os próprios brinquedos, assiste a filmes de horror e apela ao sobrenatural para tentar trazer a mãe de volta.

A Sombra do Pai se distancia do filme anterior na trama, no tom e na estética, mas confirma o talento da diretora para abordar os medos da sociedade brasileira a partir da gramática do cinema de horror. Seja no restaurante de O Animal Cordial ou na casa de Dalva e Jorge, há mais em discussão do que de início possa parecer: violência, desigualdade, desvalorização do trabalho, relações desumanas.

“Para mim, contar uma história está ligado a contar uma história de medo”, afirmou a diretora, em entrevista ao Mulher no Cinema. “A questão fundamental de existir é quando é que vai acabar, e as narrativas que trabalham neste terreno me colocam em um contato com a vida, ou com um desfrutar da vida, que é muito mais pulsante. Os filmes de medo tratam da morte, do momento em que você tem e não tem mais, está vivo e não está vivo. Essa mudança brusca na perspectiva da existência é o que mais me interessa.”

Roteirista de seus filmes, Gabriela também é uma cineasta que enxerga possibilidades de significado em todos os elementos de som e imagem. Há um claro cuidado para que espaços nao sejam apenas locações, mas funcionem como extensões dos personagens. Jorge se move por uma obra inacabada; Dalva, por uma casa vazia. Isolamento e tensão estão nos lugares internos e externos, como a festa junina ou o parquinho da praça.

Na entrevista a seguir, Gabriela fala sobre os bastidores de A Sombra do Pai e o fascínio pelas histórias de horror. Comenta, também, a situação do cinema nacional no governo Jair Bolsonaro, abalado por cortes de patrocínios e as ações do Tribunal de Contas da União (TCU) em relação à Agência Nacional do Cinema (Ancine), que abalam o financiamento público de obras audiovisuais.

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O Animal Cordial foi muito bem recebido e apresentou seu cinema ao grande público. Tem sido diferente lançar este novo filme, agora que já existe uma expectativa sobre o seu trabalho?
[A recepção de O Animal Cordial] foi uma grata surpresa. Mesmo quem gosta de horror destrata o slasher, que é um gênero bastante problemático mesmo, com muita misoginia e fetichização do corpo feminino. E ainda que O Animal Cordial subverta estas regras, ele parte delas para subvertê-las. Então foi uma grata surpresa que as pessoas estivessem dispostas a entender o que aquela estrutura escondia, onde estava a questão realmente. Mas cada história é uma história, e A Sombra do Pai tem o universo de forças dele. Talvez por estar sempre produzindo alguma coisa, não me sobra muito tempo para essa psiqué de como o filme será recebido. E nosso cinema é tão frágil que só de colocar um filme no mundo, apesar de todas as condições adversas…

Como em O Animal Cordial, em A Sombra do Pai os espaços nos quais a trama se desenvolve são muito importantes e cheios de significados: seja a obra onde Jorge trabalha ou a casa da família, que é quase sem decoração. Fale um pouco sobre as escolhas referentes à cenografia.
Sempre encaro os espaços como ferramenta para falar dos personagens e do que estão sentindo. Uma característica de funcionamento do horror é o isolamento: um personagem isolado têm menos chances de resolver os problemas do que se estiver inserido no mundo, e a contenção de espaço configura este isolamento imageticamente. Tanto Jorge quanto Dalva são reféns dos espaços. Dalva é refém de uma infância limitada no sentido de horizontes, de possibilidade de expansão. Ela consegue ir além disso através da imaginação, mas o espaço é contido. Jorge é pedreiro em uma obra que foi pensada como labirinto, para a gente não saber onde está. É uma obra com muitos corredores incompletos, assim como a casa é incompleta. O diretor de arte Valdy Lopes, o figurinista Diogo Costa e o maquiador André Anastácio fizeram, juntos, um trabalho de redução de elementos. É como se aquela casa contivesse, por metonímia, o que tem uma casa desprovida de afeto e do feminino. Quando a mãe vai embora, é como se a casa perdesse um pouco da vida. O Valdy propôs uma redução de cores, objetos e enfeites, para que gente sentisse essa ausência mesmo. No caso dos figurinos, eles se confundem com os espaços, principalmente os do Jorge, um personagem engolido pelo materialismo, pelo correr dos dias, pela sobrevivência. A cor das roupas se funde à do espaço no qual ele está trabalhando.

E como se pensou a música, que é bastante presente?
A música é do Rafael Cavalcanti, também de Animal Cordial. Ele compõe a partir do que os personagens tentam esconder. É um método de olhar o que aquele personagem não entrega em texto e preencher estes espaços com música. Usada de maneira desmedida, a música pode causar um embotamento da imagem: você fica apenas com a emoção da música e a imagem perde a relevância. Já a ausência da música pode diminuir a potência de uma situação. Como o horror trabalha muito com sentidos, a trilha sonora se justifica por isso: porque música mexe com o corpo. É uma das artes mais potentes para se chegar ao coração antes de se chegar ao cérebro.


“Para mim, contar uma história está ligado a contar uma história de medo. A questão fundamental de existir é quando é que vai acabar, e as narrativas que trabalham neste terreno me colocam em um contato com a vida, ou com um desfrutar da vida, que é muito mais pulsante. Os filmes de medo tratam da morte, do momento em que você tem e não tem mais, está vivo e não está vivo. Essa mudança brusca na perspectiva da existência é o que mais me interessa neste tipo de história.”


Como foi trabalhar com uma criança em um filme como este?
Eu adoro trabalhar com criança. A única tensão [vem do fato de que] criança é imprevisível, no sentido de quanto ela vai render no set. A gente tem de pensar uma dinâmica de acesso às cenas para o universo da criança. Há todo um trabalho de ressignificação que para mim é muito rico, mas leva tempo. Tempo é sempre uma questão no cinema, e com criança isso se eleva à nona potência. Mas tirar a interpretação da criança é maravilhoso, porque nada passa pelo racional. É muito fluida a passagem entre o faz de conta e o real, e isso pede um cuidado também. Toda a equipe tem de estar em sintonia para a criança se sentir bem, não se sentir pressionada, ameaçada. A gente tem de falar o código dela.

Você ensaia muito?
Ensaio, mas não o texto, apenas a convivência, os estados, corpo, improvisação. O ensaio não é para o ator
 decorar o texto, mas, sim, para a gente investigar o que as cenas guardam de misterioso.

Sua obra tem explorado diferentes subgêneros dentro do horror. As histórias ditam quais subgêneros você vai abraçar ou o que guia é a vontade de experimentar determinados formatos?
É sempre a história. Para mim, contar uma história está ligado a contar uma história de medo. Chamo de medo a família de filmes que trabalham o emocional do espectador a partir da ansiedade, do medo, do medo de morrer…são estas as histórias que me interessam. A depender de quais histórias forem, vou encaixar em algum subgênero. A família é enorme: gosto de thrillers, filmes sobre assassinos, histórias de detetive. Me interessa o engenho da narrativa e como isso me convida a participar do filme. O medo tem a ver com o modo como eu filtro a realidade. Acho que todos abafamos o inconsciente, passamos por cima de algumas questões porque temos medo de olhar para elas….A questão fundamental de existir é quando é que vai acabar, e as narrativas que trabalham neste terreno me colocam em um contato com a vida, ou com um desfrutar da vida, que é muito mais pulsante. Os filmes de medo tratam da morte, do momento em que você tem e não tem mais, está vivo e não está vivo. Essa mudança brusca na perspectiva da existência é o que mais me interessa neste tipo de história.


“É uma melancolia lançar um filme sabendo da dificuldade que vai ser para produzir mais filmes. Cinema é um negócio tão especial para mim, tão ritualístico, importante, sagrado. É como se fosse o álbum de retratos do nosso país. É guardar certas imagens e sensações ao longo do tempo – e isto corre um sério risco de se perder. Posso continuar fazendo filmes que passem na TV ou que não precisem de financiamento público. Mas o filme com financiamento público nos permite a liberdade de radiografar o que está realmente nas entrelinhas de um tempo.”


Este é um filme de horror no qual vemos algo tão brasileiro quanto a festa junina, e não a abóbora do halloween. Acha que o terror nacional pode vir a ser uma referência para crianças no futuro, um pouco como a Dalva vê Cemitério Maldito na televisão, por exemplo?
Eu adoraria. Quando criança, não via filme brasileiro, porque não tinha. Claro, estudei cinema depois, mas os filmes que passavam na televisão aberta eram filmes americanos dublados. Minha primeira ideia de cinema foram filmes dublados de terror. Mas seria lindo ter filmes nacionais acessíveis, passando na TV.

No entanto, neste momento um mesmo filme americano, Vingadores: Ultimato, ocupa cerca de 80% das salas brasileiras, o que é apenas um dos vários problemas que o cinema nacional enfrenta no governo Bolsonaro. A sensação é de um desmonte que afeta produção, financiamento e até a possibilidade de assistir aos filmes. Como você tem visto tudo isso?
[Antes de começar a entrevista] você me perguntou como eu estava me sentindo em lançar o filme. Estou me sentindo triste. Triste pela maneira clara com a qual se busca calar um movimento que está no ápice. Estamos em um ápice de criatividade, com quatro filmes em Cannes. Uma geração de cineastas leva anos para se formar, e justamente nesse momento vem essa porrada. Estou me sentindo triste. É uma melancolia lançar um filme sabendo da dificuldade que está sendo e que vai ser para produzir mais filmes e ter esta liberdade. Cinema é um negócio tão especial para mim, tão ritualístico, importante, sagrado. É como se fosse o álbum de retratos do nosso país. É guardar certas imagens e sensações ao longo do tempo – e isto corre um sério risco de se perder. Posso continuar fazendo filmes que passem na TV ou que não precisem de financiamento público. Mas o filme com financiamento público nos permite a liberdade de radiografar o que está realmente nas entrelinhas de um tempo. Acho muito triste que isto esteja ameaçado. Então não estou em um momento especialmente feliz, porque um filme não faz uma cinematografia. É muito bom lançar A Sombra do Pai, mas há esta dualidade. Porque estes diretores chegaram a um momento de maturidade que coincide com este demonte, e isso não é à toa. Não é à toa que perdemos patrocínio para os principais festivais do país. O cinema é onde a gente assegura nossos mitos, e deixar isso ser terraplenado pelo cinema comercial apenas…[O espaço do cinema brasileiro], em números, já é um nada. Mas mesmo este nada é tirado, porque este nada produz mudança. Esta é a questão.

Ao mesmo tempo, recentemente estive em um evento no qual uma estudante de cinema pediu um conselho para quem está começando na área justamente neste momento do Brasil. E eu me senti no papel de alguém que, sem dourar a pílula, tinha de ajudá-la a não desistir.
Não existe possibilidade de desistir! 
Haverá outras maneiras, elas vão chegar. Não estou chorando o fim do cinema, estou chorando o fato de essa geração de cineastas ser interrompida e ter de se reiventar. Vai ser mais um tempo de se adaptar a uma nova linguagem. Mas se fôssemos pensar [com desistência], eu nunca faria um filme, o Brasil nunca faria um filme. Se a gente precisasse do ideal de produção, a gente nunca faria cinema. É uma readequação que terá de existir, sempre. E, ironicamente, também é o momento em que as histórias estão mais no ar – porque tem muito conflito. É um momento de perseguição, mas esta perseguição vai gerar muita narrativa. Como você vive nesse céu de chumbo, nesses silenciamentos? Isso vai gerar muita coisa.


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

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