Na Índia, Inka Achté retrata iniciativa que educa garotos sobre masculinidade tóxica

Em 2012, um crime violento ocorrido em Nova Délhi, na Índia, chocou o mundo: a estudante Jyoti Singh Pandey, de apenas 23 anos, foi espancada, torturada e estuprada por seis homens dentro de um ônibus. Morta em decorrência do ataque, a jovem tornou-se símbolo da luta das indianas por direitos, especialmente na cidade que é a quarta mais perigosa do mundo para as mulheres, de acordo com pesquisa global da Fundação Thompson Reuters publicada no ano passado.

Longe dali, em Londres, a cineasta finlandesa Inka Achté acompanhava a cobertura do caso quando se deparou com um artigo sobe Harish Sadani, criador da organização Men Against Violence and Abuse (Homens Contra a Violência e o Abuso), que busca educar garotos indianos quanto à igualdade de gênero e cultura do estupro, estimulando-os a reconhecer e defender os direitos das mulheres. Sadani e sua organização são o tema de Garotos que Gostam de Garotas, documentário que a diretora exibiu na edição deste ano da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

Inspirada pelo artigo, Achté procurou por movimentos que fizessem este mesmo tipo de trabalho dentro da Europa. “Queria saber se havia algo similar na Finlândia, onde nasci, na Suécia, que é culturalmente próxima, e no Reino Unido, onde morava na época, mas não achei absolutamente nada”, contou a cineasta, em entrevista ao Mulher no Cinema durante sua passagem por São Paulo. “Então tive de ir até a Índia para fazer o filme.”

Saiba mais: Acompanhe a cobertura completa da Mostra de Cinema de São Paulo

Em Garotos que Gostam de Garotas ela conta tanto a história de Sadani quanto a de Ved, um menino indiano de 16 anos criado por um pai abusivo, e que é um dos participantes dos workshops feministas da organização. A diretora conseguiu financiamento em 2014 e finalizou o longa em 2017, quando a discussão sobre abuso sexual e igualdade de gênero já estava em outro patamar, embalada por movimentos como o Me Too.

“Quando começamos a fazer o filme, o sentimento geral entre os financiadores era o de que este não era um problema na Europa. Era um problema na Índia, vista como sociedade atrasada”, contou Achté. Segundo ela, a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos começou a mudar este cenário. “Todos sabemos como ele gosta de falar das mulheres, e este foi o primeiro passo para as pessoas perceberem que este problema também é do mundo ocidental. Com o Me Too e as marchas das mulheres pelo mundo, ficou mais fácil convencer financiadores a apoiar o filme.”

Imagem do filme “Garotos que Gostam de Garotas”, de Inka Achté

Após acompanhar o trabalho de Sadani, a diretora acredita na importância de educar os homens sobre igualdade de gênero. “Os homens são parte do problema, têm parte na violência contra as mulheres”, afirma. “E eles mesmos sofrem com a masculinidade tóxica e têm grandes chances de serem atacados fisicamente por exibirem ou manifestarem uma masculinidade ligeiramente diferente. Então [este trabalho quer] não apenas acabar com a misoginia e a fazer a vida das mulheres mais tolerável, mas também ajudar os próprios homens.”

O caminho, porém, é longo, e o próprio documentário não mostra um “claro despertar feminista na vida do adolescente”, como define a diretora. As tradições indianas, bem como questões religiosas e o sistema de castas fazem com que o problema tenha raízes profundas. Mas Achté nota pequenas mudanças.

“A discussão já é algo enorme. [O tema] ter se tornado público e estar sendo levado a sério já é algo enorme. Pessoas irem para a prisão por abuso sexual e abuso de poder é algo enorme”, afirmou. “Seria bom vermos mais mudanças legislativas, mas o Me Too está muito forte na Índia e isso tem de significar alguma coisa.”


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Nátali Hernandes/ agenciafoto.com.br

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