Dominga Sotomayor: “Quero documentar as emoções, não os grandes eventos”

“Transição” é a palavra-chave de Tarde para Morrer Jovem, filme que estreia nesta quinta-feira (27) nos cinemas brasileiros, e que em 2018 fez da cineasta chilena Dominga Sotomayor a primeira mulher a ganhar o prêmio de direção no Festival de LocarnoPrimeiro, há a transição de um país: a história se passa no verão de 1990, pouco depois da queda do general Augusto Pinochet (1915-2006), quando o Chile passava da ditadura para a democracia. Depois, há a transição de três jovens – Sofía, Lucas e Clara -, que amadurecem e se transformam enquanto se preparam para a festa de ano novo da comunidade isolada onde vivem.

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As transições de Tarde para Morrer Jovem não se dão de forma óbvia. O contexto histórico é marcado mais pelas roupas e canções do que por discursos políticos, e os personagens se expressam pouco verbalmente. O cinema da diretora chilena lembra o da argentina Lucrecia Martel ao não se prender à trama ou à ação, e ao confiar na capacidade do espectador para descobrir, aos poucos, quem são aquelas pessoas e como se conectam. “Não me interessam as grandes histórias”, explicou Sotomayor, em entrevista por telefone ao Mulher no Cinema. “Me interessa o que está no meio, aquilo que não se pode capturar. Mais do que documentar grandes acontecimentos, me interessa a zona intermediária na qual você pode documentar emoções.”

Sotomayor conhece bem a história que está contando. Em 1990, quando tinha cinco anos, ela se mudou com os pais para a mesma comunidade que serve de locação para o filme. Para chegar ao cenário de sua infância e adolescência, quando poucas famílias viviam no local, ela teve de fazer algumas adaptações. “Foi quase como desconstruir”, contou. “Tivemos de esconder a eletricidade e deixar tudo mais precário.”

A diretora chilena, que cresceu sem televisão, chegou ao cinema por meio de outras artes e foi influenciada principalmente pela mãe atriz e a avó pintora. Na adolescência, descobriu o cinema de diretores como Abbas Kiarostami (1940-2016) e Michelangelo Antonioni (1912-2007), fez teatro e percebeu que o cinema unia muitos de seus variados interesses. Depois de estudar direção na Universidade Católica do Chile, lançou filmes como De Jueves a Domingo (2012) e Mar (2014), e tornou-se uma das fundadoras da produtora Cinestación e do Centro de Cinema e Criação, um centro cultural em Santiago.

Imagem do filme “Tarde para Morrer Jovem”, de Dominga Sotomayor

Tarde para Morrer Jovem é seu terceiro longa, uma coprodução com a brasileira RT Features, lançado em um momento de grande valorização do cinema chileno no cenário internacional. Politicamente, o Chile também enfrenta um novo cenário de transição: desde outubro, protestos liderados por jovens têm demonstrado a insatisfação da população com a classe política e a desigualdade social do país. A repressão policial tem sido violenta, com mais de 30 mortes registradas, e as manifestações devem continuar ao menos até o fim de abril, quando a população votará, em plesbiscito, se o Chile deve elaborar uma nova Constituição.

Sotomayor, que é a favor da medida, diz se tratar de uma revolução. “O Chile nunca mais voltará a ser o mesmo, e é muito forte viver isso”, afirmou. “É algo que implica em crises e transformações pessoais, em aprender a viver com novas liberdades. Creio que a política voltou às pessoas e que é responsabilidade de todos fazer com que as coisas aconteçam e que algo bom saia de tudo isso, porque muita gente morreu.”

Leia a entrevista com Dominga Sotomayor:

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O filme foi rodado na mesma comunidade na qual você cresceu. Foi preciso alterar muito a locação ou ela já atendia naturalmente ao que você buscava?
O lugar é o mesmo, mas mudou muito. Tivemos de transformar muitas coisas, usar apenas algumas partes que ainda estavam como nos anos 1990. A comunidade passou a ter muito mais casas do que na minha época, quando eram apenas umas dez, não havia eletricidade e todas as estradas eram de terra. Mas para mim era importante filmar lá e não buscar outro lugar. Pudemos usar algumas casas que funcionavam, como a de Sofia, que só adaptamos um pouco. Foi quase como desconstruir: esconder a eletricidade, deixar tudo mais precário.

Todos os atores são profissionais ou você combinou atores e não atores?
O casting foi bem desafiador porque há um pouco de tudo. Todos os jovens e crianças são não atores e não tinham nenhuma experiência. Muitos vivem atualmente na comunidade: a busca partiu de crianças que moravam lá, que tinham a experiência daquele lugar. Depois há adultos não atores, como o pai de Sofía, que mora na comunidade e é pintor. E também há atores com muita experiência, como Antonia Zegers, que interpreta Elena, ou Alejandro Goic, que fez um monte de filmes. O mais desafiador era colocar todos eles no mesmo tom e fazer com que estivessem todos nesse mesmo mundo. Também não entreguei o roteiro aos atores jovens. Com as crianças, fazíamos jogos, dávamos a ideia de que estavam jogando e reagindo, não atuando, para que tudo ficasse mais vivo. O filme é muito parecido com o roteiro, mas tomei mais liberdade do que em outros filmes. Algumas coisas mudaram em relação ao texto, algumas situações surgiram na hora.

A música é muito presente no filme. Como você buscou trabalhar este elemento da história?
Sempre soube que seria um filme musical. Já no roteiro coloquei muitas das canções que aparecem em cena. Gosto muito de brincar com a música popular e sinto que em meus filmes, de forma geral, os personagens têm muita dificuldade de dizer o que está acontecendo, então a música que escutam meio que fala por eles. Além disso, o filme é sobre a transição, e aquele foi um período também de transição musical no Chile. Estava acontecendo o “canto nuevo”,uma música comprometida com a política, que se ouve mais no início do filme, e no outro extremo estava Michael Jackson e música pop. Então o filme tem esse caos musical.

E a cena em que Sofia canta “Eternal Flame”, das Bangles? Por que escolheu esta música?
Pensei no que cada personagem ouviria. Como Sofia era alguém que não queria estar lá, que queria ir embora, me parecia coerente que escutasse música em inglês, que suas referências estivessem longe. “Eternal Flame” é uma canção muito universal daquela época, e curiosamente fala de chama eterna, de fogo [algo presente na narrativa]. Mas não escolhi tanto por isso, foi mais pela sensação. Me dei muita liberdade neste filme, muito mais do que em outros trabalhos. Como estava retratando um mundo aberto e livre, me parecia que o filme também tinha de ser orgânico, disperso, livre. Esta cena por exemplo, para algumas pessoas pode parecer meio fora da linguagem do filme, meio videoclipe demais. Mas queria filmá-la porque tinha a ver com a emoção daquele momento e a liberdade que eu queria ter.


“Há os filmes que fazem você se esquecer de si mesmo, que são os americanos, que têm causa e efeito e te levam de um ponto a outro em duas horas. Nessas duas horas, você se esqueceu de você. E há os filmes que te devolvem o tempo, que te obrigam a estar com você mesmo, e que nem sempre não são prazerosos. Às vezes até são incômodos, porque você tem de se conectar consigo mesmo. E para mim isso é mais interessante: fazer filmes imperfeitos, que dão tempo ao outro. Relatos mais incompletos, que creio que são mais políticos também.”


Tendo sido criada em um lugar isolado e sem eletricidade, como você tornou-se cineasta? Você tinha contato com o audiovisual na adolescência ou foi algo que surgiu depois?
Não tive eletricidade por alguns anos, quando era bem pequena. Depois ela chegou, mas eu também não tinha televisão [risos] Na verdade acho que minhas principais influências não vêm do cinema nem da televisão. Minha mãe é atriz e foi estrela de novelas nos anos 1980 e 1990. É até uma certa contradição: eu tinha muita proximidade com estúdios de gravação, mas não tinha televisão em casa [risos] Além disso, minha avó era pintora, então acho que muito do que me atrai no cinema tem mais a ver com a pintura, a escrita e a fotografia. Também fiz muito teatro durante os anos de escola, quase de forma profissional. Em determinado momento me dei conta de que não queria ser atriz, e que meus interesses eram muito diversos, incluíam também a ciência, a música. E aí pensei que talvez o cinema pudesse unir todos esses interesses. Além disso, quando tinha uns 16 anos comecei a descobrir que o cinema não era apenas, sei lá, Esqueceram de Mim e O Rei Leão [risos] Me dei conta de que o cinema podia estar próximo ao que me interessava. Na época vi filmes de [Abbas] Kiarostami e [Michelangelo] Antonioni, por exemplo, que lembro de terem me impactado muito. Vi que os filmes podiam ser diferentes, mais próximos do que eu via pela janela e do que se passava com a minha família.

"Tarde para Morrer Jovem", de Dominga Sotomayor
Cena de “Tarde para Morrer Jovem”, de Dominga Sotomayor

É interessante você dizer isso porque seu filme me lembrou um pouco os de Lucrecia Martel, no sentido de que, como ela, você não parece especialmente preocupada com a trama ou com uma narrativa que avança, e também não parece querer explicar demais as coisas. É um tipo de cinema que muita gente não está acostumada a ver, já que filmes como Esqueceram de Mim e O Rei Leão dominam as salas. Por que esse tipo de cinema te atrai?
Por um lado, não me interessam as grandes histórias. Me interessa mais o que está no meio, a transição, aquilo que não se pode capturar. Mais do que documentar grandes acontecimentos ou histórias, me interessa a zona intermediária na qual você pode documentar emoções. Me interessa documentar algo vivo. A outra coisa é a vontade de fazer filmes mais abertos, nos quais você pode estar. É quase como um convite para se estar em outro lugar e outro tempo. Simplificando muito, penso que há dois tipos de filmes. Há os filmes que fazem você se esquecer de si mesmo, que são os americanos, que têm causa e efeito e te levam de um ponto a outro em duas horas. Nessas duas horas, você se esqueceu de você. E há os filmes que te devolvem o tempo, que te obrigam a estar com você mesmo, e que nem sempre não são prazerosos. Às vezes até são incômodos, porque você tem de se conectar consigo mesmo. E para mim isso é mais interessante: fazer filmes imperfeitos, que dão tempo ao outro. Relatos mais incompletos, que creio que são mais políticos também. Isso implica que as pessoas não venham me dizer “amei seu filme” ou “que filme lindo”. Acho que são experiências que ficam com você um tempo, que te fazem pensar em você, talvez recordar algo que tinha esquecido ou mudar alguma ideia que tinha.

O cinema chileno tem recebido grande reconhecimento internacional nos últimos anos, inclusive no Oscar. Isso ajudou a fazer com que os chilenos assistam a mais filmes do país?
Por um lado acho que a percepção do público mudou. Antes as pessoas achavam que todos os filmes chilenos eram obscuros e políticos, e agora elas sabem que há muita variedade. É um momento explosivo, diferente. Ao mesmo tempo, estamos em uma terrível crise de público. Poucas pessoas vão ver filmes chilenos e os poucos cinemas mais “de arte” têm sido demolidos. É um momento bem crítico no Chile, ainda que seja um momento super bom no que diz respeito a como as pessoas de fora veem o nosso cinema. Acho que os chilenos dão valor aos filmes, mas o governo não dá atenção suficiente ao cinema, nem os recursos necessários.

Dominga Sotomayor com o prêmio de direção no Festival de Locarno de 2018

Seus filmes falam muito sobre jovens, e os jovens chilenos têm estado no centro dos protestos que há meses acontecem no país. Como você está vendo este momento?
É um momento intenso. Acho que crescemos adormecidos por um suposta chegada à democracia. Nos convenceram de que o Chile tinha se convertido em um oásis, que parecia forte economicamente. Mas isso foi às custas de muita indignidade e injustiça, de um sistema neoliberal que se implantou como ditadura. Não somos donos nem da água, tudo está privatizado e há uma desigualdade social escandalosa. De certa forma, vejo o que está acontecendo com um pouco de alívio, pois isto tinha de explodir em algum momento. E não é um problema local, tem a ver também com o que está acontecendo no Brasil e em vários outros lugares. Havia uma ilusão de democracia, e tinha medo de que continuássemos nela. Quando ia viajar, ouvia as pessoas dizerem que o Chile era incrível, e respondia que não, que estava tudo embaixo do tapete. É um momento crítico e difícil, mas uma oportunidade de mudança. Ao mesmo tempo há muito medo, porque muitas pessoas estão tentando impedir a mudança para proteger seus interesses. Me assusta muito que os jovens estejam na linha de frente, criando essa mudança, porque eles não cresceram na ditadura, e não têm o medo que nós temos – meus pais e mesmo a minha geração. Os jovens não sabem do poder e da violência que [o Estado] pode exercer. Temos visto um nível de violência aos direitos humanos, uma repressão por parte da polícia e do governo, uma irresponsabilidade que me assusta muito. Penso que será um ano difícil no Chile, e realmente espero que a mudança na Constituição seja aprovada. A direita está tentando assustar as pessoas para que isso não aconteça, e acho que vai haver muita repressão. É preciso estarmos bem atentos para que os jovens não sigam perdendo suas vidas. Estamos acordados, os jovens estão acordados, mas estamos perdendo muitas vidas nesta revolução. E acho que é realmente uma revolução: o Chile nunca mais voltará a ser o mesmo. Pessoalmente, viver isso é muito forte. É algo que implica em crises e transformações pessoais, em aprender a viver com novas liberdades. É sempre mais fácil manter o que você já tem, mas agora temos uma página em branco. A política voltou às pessoas e é responsabilidade de todos fazer com que algo bom saia de tudo isso, porque muita gente morreu.

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?
É preciso ser muito insistente, curiosa, questionar tudo. Especialmente no caso das latino-americanas, é preciso saber de produção, distribuição – não dá para se contentar em ser diretora. E acho que só a própria pessoa sabe quando um projeto é necessário, mas que é preciso ser honesta em relação a essa urgência. Não se pode fazer um filme apenas para fazer um filme. Há um montão de filmes por aí, e isso cria um impacto enorme no meio ambiente. Acho que os projetos ganham valor com o tempo, então é preciso ser paciente. E é preciso viver o processo: fazer o que se tem vontade de fazer naquele momento com devoção, e não pensar em qual festival o filme vai passar ou qual repercussão vai ter. Acho que na verdade se trata de ir para dentro. A única coisa particular de uma pessoa é ela mesma. Todas as histórias estão contadas, então não é preciso olhar para fora ou para longe. Olhe para dentro de você, porque isso é o que você tem de mais valioso.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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