Coordenadoras de intimidade: como é o trabalho destas profissionais nos sets

Um efeito inesperado do escândalo Harvey Weinstein, e da avalanche de denúncias de assédio e abuso sexual em Hollywood, foi a criação de uma nova profissão: o coordenador de intimidade. Se até 2017 esta função não existia nos sets de filmagem, hoje é bastante raro encontrar grandes produções de cinema e televisão dos Estados Unidos que não incluam estes profissionais na equipe.

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Em linhas gerais, os coordenadores de intimidade fazem a mediação entre os atores e a produção no que diz respeito à nudez e às cenas íntimas, que podem ir de um beijo à simulação de sexo. Além de negociar cláusulas contratuais e coreografar as sequências a serem rodadas, estes profissionais também acompanham a filmagem para garantir que todos se sintam seguros e ninguém seja surpreendido por pedidos de última hora.

Nos últimos anos, conforme o movimento #MeToo ganhou terreno em Hollywood, muitas atrizes falaram publicamente sobre ocasiões em que se sentiram pressionadas a fazer cenas que não queriam ou que não tinham sido previamente acordadas. Não se trata de fenômeno recente: um dos casos mais emblemáticos desse tipo de abuso é o da atriz Maria Schneider (1952-2011), que por diversas vezes relatou o trauma causado pela experiência no set de Último Tango em Paris, dirigido por Bernardo Bertolucci em 1972.

Mas apesar de os casos serem muitos, e muito antigos, foi apenas no pós-Weinstein que a indústria cinematográfica americana passou a discutir as regras para filmagens de cenas íntimas – ou a ausência delas. Eis que surgem os coordenadores de intimidade, liderados pela dublê e ex-atriz Alicia Rodis, que foi a primeira pessoa a ocupar a função ao entrar para a equipe da série The Deuce em 2018. Foi o início de um boom: de acordo com estimativa da revista Hollywood Reporter, em dezembro de 2020 havia de 50 a 60 coordenadores de intimidade trabalhando em diferentes países, incluindo no set de pelo menos 23 séries indicadas ao Emmy e produzidas por empresas como Starz, Netflix, HBO, Hulu e Amazon.

A atriz Monica Raymund e a diretora Rachel Morrison no set de “Hightown”, série da Starzplay – Foto: Divulgação

A série Hightown, exibida no Brasil pela Starzplay, exemplifica o rápido crescimento da profissão. Na primeira temporada, que começou a ser produzida em 2017 e foi filmada em 2019, a produção não contratou coordenador de intimidade. Na segunda, realizada entre 2020 e 2021, a própria Starz sugeriu que a criadora e roteirista Rebecca Cutter incluísse esse tipo de profissional na equipe. Embora ambas as temporadas sejam similares no que diz respeito à quantidade e tipo de cenas de nudez e sexo, os poucos anos que separam uma e outra foram suficientes para que os coordenadores de intimidade deixassem de ser novidade para ser norma.

Isso não significa, porém, que a profissão seja sempre bem vista ou bem-vinda. Embora os coordenadores de intimidade costumem comparar seu trabalho ao dos coordenadores de dublês, há quem os veja como “policiais do set” ou gestores de Recursos Humanos. “Educar as pessoas é parte importante da nossa atuação”, afirmou a coordenadora de intimidade Marci Liroff, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Alguns diretores sentem que estou interferindo no trabalho deles, e cabe a mim explicar que não, que trabalho e colaboro com eles, assim como qualquer outro chefe de departamento – assim como os diretores de arte ou as pessoas do som.”

Liroff começou a trabalhar como coordenadora de intimidade em 2019, após longa carreira como diretora de casting. Ela se formou na segunda turma do programa de treinamento da Associação de Profissionais de Intimidade, fundado em Los Angeles por Amanda Blumenthal, outra pioneira da profissão. Depois de trabalhar em filmes e episódios específicos de séries de televisão, Liroff foi contratada para atuar como coordenadora de intimidade durante toda a segunda temporada de Hightown. A série tem Monica Raymund no papel de Jackie Quiñones, policial lésbica e de origem latino-americana que busca deter o tráfico de drogas na cidade de Cape Cod, ao mesmo tempo em que tenta manter a própria sobriedade.

O último episódio da segunda temporada de Hightown estreia em 26 de dezembro, na Starzplay. Abaixo, leia ou assista à entrevista do Mulher no Cinema com Marci Liroff, na qual ela fala sobre a experiência na série e explica como é o trabalho dos coordenadores de intimidade.

Em entrevistas e artigos você costuma dizer que o consentimento é o grande pilar dos coordenadores de intimidade, e que busca “consentimento enfático” por parte dos atores. O que é consentimento enfático e como você constrói seu trabalho em torno dele?

Primeiro converso com os cineastas sobre o que buscam naquela cena. Isso inclui que tipo de nudez vamos ver, qual ato sexual eles querem simular e qual é o tom do filme. Depois, falo com os atores de forma privada, frente a frente, para ter certeza de que não estão sendo pressionados ou coagidos a fazer a cena. Se pergunto algo como “tudo bem se ele morder seu mamilo?” e a resposta é “hum…bem…hum…ok, acho que sim, tudo bem” – isso não é consentimento enfático. Vou encarar essa resposta como um “não”. Os atores têm dificuldade em dizer “não” e não compreendem que seu “não” é poderoso. Um exemplo de consentimento enfático seria se eu fizesse a mesma pergunta e a resposta fosse: “Sim, tudo bem, ótimo, super entendo [a cena], confio nele e ele confia em mim”. Consigo perceber muito facilmente [se o consentimento é enfático ou não]. Faço [a reunião] pelo Zoom ou pessoalmente, para ver os rosto dos atores e ter certeza de que o que estão dizendo realmente é verdade.

Antes de os coordenadores de intimidade existirem, ouvimos muitas histórias sobre acordos prévios que foram alterados na hora da filmagem. Por exemplo, histórias de atrizes que se sentiram pressionadas a fazer algo que não tinham concordado em fazer, ou que não foram informadas sobre algo que estava acontecendo em cena, enquanto o diretor e o ator estavam cientes de tudo. Você já passou por alguma situação desse tipo? Se passasse, como agiria?

Isso é coisa dos velhos tempos, ou seja, de antes de 2017 [risos] Não há como isso acontecer hoje, pois nosso trabalho é feito na pré-produção e todas as discussões são feitas antes da filmagem. O Comitê dos Coordenadores de Intimidade trabalhou junto com o SAG-AFTRA [organização sindical que representa os atores nos Estados Unidos] para criar uma determinação contratual segundo a qual os atores devem receber sua “cláusula de nudez” ao menos 48 horas antes de a cena ser filmada. A cláusula de nudez é parte do contrato e explica, em termos muito específicos, que tipo de nudez vamos ver. O texto pode dizer, por exemplo, que vamos ver a lateral do seio da atriz, mas não o mamilo. Depois que entregamos a cláusula de nudez aos atores com esse período de antecedência, nada pode ser alterado no dia da filmagem. Faz parte do contrato, para que ninguém possa tirar vantagem deles. E eu também estou lá para garantir que isso não aconteça. Se a produção quiser mudar qualquer coisa na cena, vai atrasar o relógio em 48 horas, e isso ninguém quer, certo?

A sua profissão foi criada em 2017, depois do escândalo Harvey Weinstein. Agora que alguns anos se passaram, como a indústria vê os coordenadores de intimidade? Você sente que é vista como uma real colaboradora no processo criativo ou ainda há resistência? Há quem pense o contrário, que você está ali para limitar a criação e atuar como a policial do set?

Algumas pessoas realmente me veem como a policial do sexo ou como a pessoa da área de Recursos Humanos, da área que os funcionários usam para reclamar. Isso só mostra que não entendem realmente o que é este trabalho. Educar cineastas e suas equipes é uma parte muito importante da nossa atuação. É comum as pessoas da equipe virem até mim para perguntar: o que você faz? É uma função nova e fascinante, então precisamos explicar como atuamos e como podemos colaborar. Alguns diretores sentem que estou interferindo no trabalho deles, e cabe a mim explicar que não, que trabalho e colaboro com eles, assim como qualquer outro chefe de departamento – assim como os diretores de arte ou as pessoas do som. Você contrata alguém com uma especialidade, deixa essa pessoa trabalhar e trabalha com ela.

As atrizes Tonya Glanz e Monica Raymund em cena de “Hightown” – Foto: Divulgação

A primeira temporada de Hightown não contou com coordenador de intimidade, apesar das cenas de sexo e nudez. O que levou a produção a contratá-la para a segunda temporada?

Não tenho certeza. Acho que quando o programa foi criado a função de coordenador de intimidade ainda estava começando a existir. Quando voltaram para a segunda temporada, já tínhamos nos tornado parte do processo de produção. A emissora sugeriu que os cineastas contratassem uma profissional da área e eles concordaram.

Qual foi a reação dos atores? Gostaram de ter você por perto?

Houve reações diferentes. Alguns pensaram: “Por quê você está aqui? O que fizemos de errado?”. E a verdade é que acho que fizeram um ótimo trabalho nas cenas da primeira temporada, que são muito convincentes e reais. Ao mesmo tempo, algumas pessoas se sentiram muito gratas em saber que eu estava ali para ajudá-los. De forma geral, me senti muito bem-vinda, tanto por parte dos cineastas quanto por parte dos atores.

A segunda temporada de Hightown foi filmada durante a pandemia. A Covid-19 afetou seu trabalho no programa e a atuação dos coordenadores de intimidade de forma geral?

Sem dúvida. A pandemia parou tudo e afetou todas as indústrias. Depois, as produções foram sendo retomadas. Acho que não poderíamos ter feito a primeira temporada durante a pandemia. Por ser a segunda temporada, os atores já tinham construído uma relação de confiança. Estávamos em uma pequena cidade com uma taxa de contaminação muito alta, mas na qual bares e restaurantes seguiram abertos. Então os atores tinham de saber que seus colegas iam se comportar no fim de semana, quando estivessem fora do set, e acho que esse nível de confiança não teria existido se fosse a primeira temporada. Durante a filmagem, usávamos máscaras e escudos faciais o tempo inteiro, assim como todo o resto da equipe. Os atores são os mais vulneráveis, porque não podem usar máscara durante a filmagem. Então a equipe era separada em zonas: aqueles que ficavam mais próximos dos atores eram da zona A e os que ficavam um pouco mais distantes eram das zonas B e C. Ficávamos bem separados para não espalharmos nada entre os diferentes grupos. Foi um desafio, mas todo mundo se comportou. E tínhamos uma equipe de Covid maravilhosa, que nos manteve saudáveis e seguros.

Mas então não houve mudança no sentido do tipo de cenas íntimas que foram filmadas ou do tipo de ações que os atores estavam fazendo nessas cenas?

Não mudamos nada. Sei de muitas produções que reescreveram várias cenas completamente, mas nossa criadora e roteirista, Rebecca Cutter, não hesitou, não mudou nada. Então, houve muita intimidade.

A atriz Monica Raymund durante as filmagens da segunda temporada de “Hightown” – Foto: Divulgação

Hightown têm muitas cenas de sexo entre mulheres. Isso muda seu trabalho de alguma forma?

[Pausa] Não. Sinceramente, não. Se fosse algo mais especializado, como uma cena de BDSM [sigla para relações sexuais que envolvem Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo], eu teria de fazer muita pesquisa antes. Mas [serem duas mulheres] não mudou nada para mim.

Fiz essa pergunta porque percebi que seu treinamento envolveu temas como “combate ao racismo” e “como ser um aliado da comunidade LGBTQ”, e a protagonista de Hightown é uma mulher lésbica de origem latino-americana. Porque é importante que um coordenador de intimidade receba esse tipo de treinamento?

É importante entender o mundo dessas pessoas. Se estou trabalhando como diretora de casting e fazendo um processo de seleção de elenco para escalar uma mulher transexual, tenho de fazer muita pesquisa e entender o mundo dela. Preciso fazer uma imersão nesse universo, e o mesmo tem de acontecer quando estou trabalhando como coordenadora de intimidade. Além disso, também estou no set para apoiar essas pessoas. Por exemplo, soube da história de um figurinista que se recusou a usar pronomes femininos para se referir a uma mulher trans no set. Isso é muito desrespeitoso e faz com que seja muito difícil para a artista fazer seu melhor trabalho. Minha função é educar essa pessoa da equipe.

O trágico disparo no set de Rust, que matou a diretora de fotografia Halyna Hutchins, levantou um debate sobre a importância de as produções contratarem profissionais experientes e bem treinados. No caso de Rust o debate era sobre armeiros [pessoas que lidam com armas no set], mas gostaria de saber: que tipo de problemas podem ocorrer quando um coordenador de intimidade sem treinamento adequado é contratado para trabalhar em um filme ou série? 

O que está acontecendo é que tem muita gente no mundo querendo fazer esse trabalho, girando uma varinha de condão em torno de si mesmo e dizendo: “Agora sou coordenador de intimidade”. Mas essas pessoas não têm o treinamento adequado e isso é perigoso. Primeiro, para a nossa própria comunidade de profissionais, já que a má fama fica para todos nós. Se um coordenador de intimidade cria problemas no set, os produtores não vão querer contratar outros. Há protocolos a serem seguidos, o treinamento é robusto e envolve muita leitura. Há muita coisa envolvida nessa profissão, e se você não as conhece, vai criar problemas. Você pode causar danos psicológicos aos atores se não tratá-los corretamente.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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