Documentário “Saudade Mundão” retrata cotidiano e histórias de prisão feminina

Quando Julia Hannud e Catharina Scarpellini decidiram que seu trabalho de conclusão de curso seria um documentário sobre uma penitenciária feminina, seus professores fizeram ressalvas. Entrar com uma câmera em uma prisão não seria tarefa fácil, ainda mais para estudantes de cinema, e mesmo no improvável caso de conseguirem passar pelo portão, não havia garantias de que as mulheres encarceradas falariam com elas. 

Mas Julia e Catharina seguiram em frente, e o resultado é o documentário Saudade Mundão, lançado neste mês nas plataformas digitais (iTunes, Google Play, Net Now, Sky Play, Watch TV, Vivo Play e YouTube). Versão estendida do curta Amor só de Mãe (a faculdade não permitia longas como trabalho de conclusão de curso), o filme impressiona pelo grau de acesso ao presídio e às retratadas – Nina, Leia, Coringa, Sandra e Elisabette.

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As ressalvas dos professores eram compreensíveis: de fato, as diretoras não conseguiram entrar em presídios da capital paulista e nem de Araxá, cidade natal de uma delas. Ao pesquisarem na internet por instituições em municípios próximos, chegaram à Cadeia Pública Feminina de Franca, no interior de São Paulo, desativada em 2017, pouco depois do término das filmagens.

No primeiro dia em que foram à penitenciária, Julia e Catharina já foram recebidas pelo delegado, que condicionou o projeto à aprovação das próprias presas. Depois de participar de uma roda de conversa com dez das 142 internas e conseguir a autorização do Primeiro Comando da Capital (PCC), as diretoras receberam uma carteirinha que lhes deu acesso ao prédio a qualquer dia ou horário, durante um mês. Para Catharina, a abertura do delegado se deveu em parte à consciência de que a cadeia de Franca não era um presídio típico: além do menor número de presas, a instituição também permitia, por exemplo, que as mulheres usassem suas próprias roupas e cozinhassem suas próprias refeições. “Ele sabia que o tratamento ali era diferente e melhor do que o de muitos outros lugares”, afirmou, em entrevista via Zoom ao Mulher no Cinema.

Imagem do filme “Saudade Mundão”, disponível nas plataformas digitais – Foto: Divulgação

Ainda assim, o acesso privilegiado permitiu que as diretoras registrassem o local como ele de fato era, dos ratos nas celas e moscas na comida a todo tipo de infraestrutura precária. Permitiu, também, uma conversa menos filtrada com as pessoas presas, que dividem histórias íntimas, lágrimas e confissões. Segundo as diretoras, não houve resistência por parte das entrevistadas. “A recepção foi super calorosa, a ponto de termos de fazer uma seleção de participantes, pois eram muitas interessadas”, definiu Catharina. 

Foram montadas duas listas: uma com os nomes de quem queria participar e outra com os de quem não queria – neste caso, as mulheres não deveriam ser filmadas nem de passagem. Segundo as diretoras, não houve “incômodos ou conflitos” apesar de se tratar de um universo muito diferente do delas. “Tínhamos noção do nosso lugar, da classe social em que estamos inseridas, da faculdade privada que fizemos e da cor da nossa pele”, afirmou Julia. “Estas questões eram latentes, mas também nos identificávamos pelo feminino. As questões relativas a ser mulher nos aproximavam muito conforme conversávamos.”

Catharina citou o momento em que as próprias presidiárias pegam a câmera e filmam a prisão como exemplo de como tentaram “incluir o ponto de vista” delas. “Tentamos dividir tudo o que podíamos para que elas também tirassem algo do filme”, definiu. De acordo com Julia, nenhuma das retratadas viu o corte final pelo fato de terem perdido contato com elas após o fechamento da cadeia. Ela disse, no entanto, ter sido orientada por advogados de que nenhuma delas poderia ser prejudicada judicialmente por algo dito no filme. 

Imagem do filme “Saudades, Mundão”, de Julia Hannud e Catharina Scarpellini – Foto: Divulgação

Mais interessado nos relatos dos que nos números, Saudade Mundão não se propõe a fazer uma investigação sobre o sistema carcerário. O contexto do filme é estabelecido brevemente em uma tela inicial na qual dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgados em 2016, estimam a população carcerária feminina brasileira em 42 mil mulheres – um aumento de 455% em 15 anos.

Dados do ano seguinte (não mencionados pelo filme) colocam o número em 37,8 mil mulheres, das quais 47,33% têm entre 18 e 29 anos, 44,4% não concluíram o ensino fundamental e 63,55% se declararam pretas ou pardas. Como o levantamento, também o filme indica que muitas das pessoas presas não tinham acesso a seus direitos ou amparo do Estado mesmo quando viviam em liberdade. Indica, ainda, que duas instituições principais ocupam as lacunas deixadas pelo governo: a igreja evangélica e o PCC. 

Após a experiência de filmar Saudade Mundão, ambas as diretoras disseram ter deixado de acreditar na possibilidade de ressocialização das presas, termo com o qual se deparavam com frequência no início da pesquisa. “Percebemos que aquelas mulheres foram excluídas muito antes de chegarem ali. Suas histórias são de ausência de Estado, de ausência de educação, de ausência de saúde, e não há como falar em ressocialização de quem nunca foi socializado”, afirmou Julia. “Espero que o filme, por meio de um viés humano, nos ajude a questionar, como sociedade civil: o que estamos fazendo para inserir estas pessoas?”.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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