Andrea Beltrão: “É doloroso, mas vamos resistir à asfixia da cultura no Brasil”

Os tempos são difíceis, mas Andrea Beltrão está cheia de energia. Na tarde em que conversou com o Mulher no Cinema, via Zoom, ela estava “esperançosa” com o resultado do plesbicito chileno que derrubou a Constituição dos tempos de ditadura militar, com o triunfo de Luis Arce na Bolívia, com a possibilidade de Joe Biden vencer Donald Trump nas eleições americanas, e com os “exemplos” de mulheres da política como a senadora e candidata à vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, e a premiê da Nova Zelândia, Jacinda Ardern. “Talvez eu me arrependa amargamente dessa esperança daqui a meia hora, quando assistir ao jornal”, brincou. “Mas sinto um cheiro de oxigênio. Acho que alguma coisa vai dar certo.”

Entrevista: “Sempre haverá um jeito de fazer cinema”, diz Sandra Kogut
Saiba mais: Veja todos os filmes dirigidos por mulheres na Mostra 2020
Apoie: Colabore com o Mulher no Cinema e acesse conteúdo exclusivo

De certa forma, a energia de Beltrão não chega a surpreender. Há pouco mais de um ano (quando a pandemia ainda não tinha começado, mas o governo de Jair Bolsonaro tinha), a atriz se mostrou firme na defesa da cultura apesar dos ataques oficiais e de parte da população. Na época, o Teatro Poeira – que ela criou e mantém em parceria com a também atriz Marieta Severo – foi uma das várias instituições afetadas pelo fim dos patrocínios culturais até então mantidos pela Petrobras. Enquanto os partidários do presidente comemoravam a notícia nas redes sociais, as atrizes se uniram ao grupo de pessoas que pacientemente tenta esclarecer a diferença entre financiamento público e “mamata”, ao mesmo tempo em que foram inequívocas quanto à intenção de resistir. Ao jornal O Globo, Beltrão garantiu: “O Teatro Poeira não vai fechar”.

Por causa da pandemia, o Poeira, que completou 15 anos em 2020, está fechado desde março. Mas Beltrão segue com a mesma determinação de que o teatro não vai acabar – nem o dela, nem a arte em si. “Sempre que alguém decreta que vai morrer, vai acabar, vai abafar – não adianta. Não adianta, porque nasce de novo”, afirmou. “Está no DNA da humanidade: a história, a identificação pela história, o contato, ver o outro se mexer, respirar, o suor, a plateia que respira e vai junto com você. Isso não foi o teatro que inventou: isso o ser humano pede.”

Beltrão vê a resistência também no cinema, encabeçada pela crescente mobilização de mulheres e pessoas negras por mais espaço. “É a coisa mais importante que está acontecendo”, definiu. “A gente está no meio de uma revolução de comportamento. Está mudando e não vai parar mais. Que essa mudança esteja acontecendo dentro da catástrofe que estamos vivendo, sanitária e da [ascensão da] extrema direita, é salvador. É salvador.”

O diretor Esmir Filho e a atriz Andrea Beltrão no set de “Verlust” – Foto: Divulgação

A atriz está de volta às telas com Verlust, filme de Esmir Filho que foi selecionado para a programação da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (este ano, realizada online) e chega aos cinemas brasileiros na quinta-feira (5). Rodado antes da pandemia, o longa dialoga com os tempos de confinamento criando uma atmosfera sufocante e centrada em única locação: a casa de praia onde a empresária musical Francisca (Beltrão) dará uma festa de ano novo. A chegada de um escritor (Ismael Caneppele, também coautor do roteiro) e de uma estranha criatura marinha que encalha na praia escancaram as crises de Francisca com o marido (Alfredo Castro), a filha (Fernanda Pavanelli) e o ícone pop Lenny (Marina Lima), de quem é empresária há vinte anos. 

Na entrevista a seguir, Beltrão fala sobre o que a atraiu em Verlust e como foi trabalhar com Marina Lima, a “revolução” que mulheres e negros estão fazendo no cinema, a situação do Teatro Poeira e a importância de se apoiar a Cinemateca Brasileira, talvez o maior símbolo do desmonte cultural promovido pelo governo. “Esta morte por asfixia que a cultura está sofrendo no Brasil é terrível. Embora a gente vá resistir, e vamos mesmo, é muito doloroso ver todos os profissionais da cultura serem criminalizados, tratados com desprezo, como se fossem pessoas desonestas”, afirmou. “Mas isso vai virar.”

Assista e leia os principais trechos da entrevista:

Por que você quis atuar em Verlust e o que te atraiu no papel?
Já gostava muito do trabalho do Esmir e do Ismael, pois tinha visto Os Famosos e os Duendes da Morte [2009, dirigido por Esmir e escrito por ambos] e Saliva [2007, escrito e dirigido por Esmir]. Fiquei desejando que um dia nosso encontro acontecesse, e de fato aconteceu. O Esmir me procurou, nós três batemos um papo e adorei a história. O que me atraiu, primeiro, foi o fato de ser um roteiro muito sensorial, muito interessante. O Esmir tem muita personalidade e toca no masculino, no feminino, no LGBTQ+. Todas essas questões, para ele, fazem parte de um universo só, e isso tudo está dentro do roteiro. Duas mulheres se casam, depois uma mulher se casa com um homem, depois outra mulher se interessa pelo cara que é bi, depois o homem se interessa…é um emaranhado de acontecimentos e disposições que achei muito interessante. Além disso, a história fala do fracasso de um tipo de comportamento que se baseia em poder, controle, autoridade, no “só serve se for do jeito que eu quero”. Esse modo de operar é uma faceta pulsante e tóxica da nossa sociedade, e o filme mexe muito com isso. E também teve o fato de a Frederica ser uma mulher louca, independente e muito diferente de mim. Aquela mulher me empolgou, me entusiasmou. Quando a personagem é diferente de mim fico pensando: como seria se eu fosse assim? Como eu seria nessa pele aí? Desse jeito aí?


“Quando Marina Lima e eu nos encontramos para fazer o filme no Uruguai, foi como se a gente tivesse convivido durante os últimos quarenta anos. Foi muito forte, muito divertido. Tivemos muita afinidade e liberdade para dizer o que estávamos achando e sentindo, os medos, as inseguranças. A gente almoçava juntas, jantava juntas. Viramos um grude. Foi maravilhoso trabalhar com ela.”


É um filme cheio de não ditos, no qual as coisas têm de ser inferidas pelo espectador e transmitidas pelos atores sem serem verbalizadas. Você mencionou que o roteiro era “sensorial”. Quanto das informações sobre a personagem e a trama você tirou dali?
A primeira missão do roteiro é muito espinhosa: contar a história de maneira plena, dar o maior panorama possível de tudo – personagens, lugares, acontecimentos – só com papel e tinta preta. Considero isso um fenômeno: passar, para alguém que vai ler, todo o universo que está na sua cabeça. Alguns roteiristas conseguem percorrer estradas grandes, e o Esmir e o Islamel conseguiram. Muita coisa, quase tudo, estava ali no roteiro. Mas seja num filme, numa novela ou numa peça, quando a imagem entra, ela é imensa, catártica, inexplicável. A imagem diz muitas coisas, e às vezes o texto que estava no papel soa radiofônico ou explicativo. Você não precisa dizer que está triste – você está triste, todo mundo está vendo. Então também na filmagem o Esmir foi limpando muitas coisas, porque não havia necessidade de verbalizar nada. Ele trabalha muito a imagem cinematográfica, assim como o diretor de fotografia Inti Briones. Durante a realização, o filme foi ganhando contornos muito fortes e às vezes as palavras iam caindo, porque a imagem estava muito poderosa. Perceber isso faz parte da sensibilidade e da maturidade do diretor, do roteirista, do elenco e de toda a equipe.

Como foi trabalhar com a Marina Lima?
Foi demais. Na década de 1980, quando tinha 17 anos, fiz o filme Garota Dourada, do Fábio Barreto, no qual a Marina interpretava ela mesma. Quando a Marina aparecia, o cinema urrava. Mas a gente não chegou a se cruzar muito, porque fazíamos histórias paralelas. No entanto, partilhamos um grande amor pelo figurinista Cao Albuquerque. Ele é como um irmão para nós duas, e embora eu nunca encontrasse a Marina, sempre que encontrava o Cao ele falava da Marina. Se eu estava com o Cao, eu estava com a Marina, e acho que o mesmo acontecia do lado de lá. Então quando nos encontramos para fazer o filme no Uruguai, foi como se a gente tivesse convivido durante os últimos quarenta anos. Foi muito forte, muito divertido. Tivemos muita afinidade e liberdade para dizer o que estávamos achando e sentindo, os medos, as inseguranças. A gente almoçava juntas, jantava juntas. Viramos um grude. Foi maravilhoso trabalhar com ela.

Marina Lima e Andrea Beltrão em cena de “Verlust” – Foto: Divulgação

Nos últimos cinco anos temos falado muito mais sobre a mulher no audiovisual, e muitas atrizes que entrevisto dizem que isso as levou a pensar mais sobre seus papéis e projetos. Da Zelda Scott até a Hebe Camargo, você interpretou várias personagens muito marcantes. Já pensava sobre essas questões antes do debate crescer? Passou a pensar? Como vê este momento?
Comecei no teatro, onde tive oportunidades maravilhosas e um espaço muito grande. Depois veio a Zelda Scott [personagem da série Armação Ilimitada, que foi ao ar nos anos 1980], que se apaixona por dois surfistas e vive um romance real: sai do quarto de um e vai para o do outro, beija um e beija o outro, transa com um e transa com outro. E, naquela época, isso não foi assunto. Não me perguntavam se era um problema, me perguntavam: “como é namorar dois caras lindos?” E eu falava: “é ótimo”. Depois, fiz a novela Rainha da Sucata [1990] e me casei com três homens ao mesmo tempo. Então estive num lugar muito interessante, muito confortável e inusitado, dentro da ficção. Pessoalmente, nunca senti que fui colocada em situação de desvantagem nesse sentido. Mas é claro que essa questão toda, assim como a questão dos negros no cinema, isso para mim é a coisa mais importante que está acontecendo. Tem de ser meio a meio nos festivais, tem de ter tantos filmes de mulheres e tantos de homens, de brancos e pretos ou pardos e indígenas. Isso é tão interessante! A gente está no meio de uma revolução de comportamento e vejo isso com uma alegria imensa, porque [a situação] vai mudar. Está mudando e não vai parar mais. Temos mulheres super-heroínas, temos o Pantera Negra, e muito mais vai chegar, muito mais vai acontecer. Por mais que eu não tenha sofrido pessoalmente, ou tido um problema com o meu espaço, reconheço que a desigualdade está em todos os lugares, em qualquer posto de trabalho. Então comemoro o que a gente está vivendo. Que bom que essa hora chegou. Que bom que estou vendo isso acontecer, que estou no meio disso, assistindo, torcendo. Dentro da catástrofe que estamos vivendo, sanitária e [de ascensão] da extrema direita, dessa coisa inacreditável que a gente lê nos jornais do Brasil…que essa mudança de comportamento esteja acontecendo no meio de tudo isso, é salvador. É realmente salvador. É a parte boa.


“A questão das mulheres no cinema, assim como a questão dos negros no cinema, isso para mim é a coisa mais importante que está acontecendo. Por mais que eu não tenha sofrido pessoalmente, ou tido um problema com o meu espaço, reconheço que a desigualdade está em todos os lugares, então comemoro o que a gente está vivendo. Que bom que essa hora chegou. Que bom que estou vendo isso acontecer, que estou no meio disso, assistindo, torcendo. Dentro da catástrofe que estamos vivendo, sanitária e da extrema direita…que essa mudança de comportamento esteja acontecendo no meio de tudo isso, é salvador. É realmente salvador.”


Andrea Beltrão e Marieta Severo em frente ao Teatro Poeira, no Rio de Janeiro, antes de ele ser inaugurado em 2005 – Foto: Flávio Colker

No ano passado, quando a Petrobras cortou o patrocínio do Teatro Poeira, você deu entrevistas muito marcantes dizendo que o teatro não iria fechar, iria resistir, e buscando esclarecer a questão do financiamento público que é tão incompreendida no Brasil. O Poeira acabou de completar 15 anos, e a situação que já era difícil agora tem o agravante da pandemia. Como você vê todo esse contexto? O que podemos pensar para o futuro?
Vamos combinar que não há nada tão ruim que não possa piorar. Mas não tem problema, não. O [ator e diretor] Amir Haddad diz algo que eu adoro. Ele diz: “Tenho 80 e poucos anos, faço teatro há 70, e todo ano alguém chega para mim e diz: ‘O teatro morreu, Amir. O teatro vai acabar, não vai resistir.” E aí ele grita assim: “O teatro morreu! Viva o teatro”. Para ele, é sempre um renascimento. Sempre que alguém decreta que vai morrer, vai acabar, vai abafar, ele fala: não adianta. Não adianta, porque nasce de novo. Está no DNA da humanidade: a história, a identificação pela história, o contato, ver o outro se mexer, respirar, o suor, a plateia que respira e vai junto com você. Isso não foi o teatro que inventou: isso o ser humano pede. Nós queremos, nós pedimos. Quero conhecer sua história, preciso saber quem você é, quero ver se a gente se parece ou não. Culturas diferentes, cores diferentes – a gente se comunica através da história do outro ou contando a nossa.

Então o Poeira não fecha.
O Poeira custa muito caro para nós em termos financeiros. É um teatro pequeno, de 180 lugares, que pratica meia-entrada, e a meia-entrada é algo que realmente deveria ser revisto. O Poeirinha, que é o teatro ao lado, tem apenas 50 lugares. Desde março, estamos mantendo os dois teatros sozinhas. Não conseguimos estabelecer data para reabertura, porque a curva desce, a curva levanta, morre mais gente, mais gente fica doente. E a questão da vacina, diz o presidente que não é preciso ter pressa. [Se abríssemos] nossa receita seria tão pequena que ficaria difícil receber as produções. Então estamos lá colocando coisas no Instagram, planejando oficinas para o ano que vem, para as quais temos um patrocínio do Itaú Cultural. Estamos tomando cuidado para dar o passo certo. Mas o Poeira realmente não vai fechar. O fato de ele ser pequeno também significa que dá para a gente fazer a faxina, a bilheteria. Em alguns teatros que conheci na Europa, você chega e a pessoa que abriu a porta vai para a bilheteria e vende os ingressos; depois corre no bar e vende um monte de café, água e bala; dali a pouco some, fecha o bar, vai se maquiar e vai para o palco. Quando vi isso pela primeira vez, não acreditei. Que coisa espetacular, que maravilha! Na minha fantasia, o Poeira sempre seria assim. Nos adaptamos à realidade do Brasil, mas até dessa maneira é possível existir. Então esse teatro não vai fechar mesmo.


“A Cinemateca é o coração, o cérebro, as vísceras da nossa história cinematográfica. É a nossa memória. Os filmes que estão ali, um material tão delicado, sendo tratado por trogloditas que não têm o menor apreço. Essa morte por asfixia que a cultura está sofrendo no Brasil é terrível. Embora a gente vá resistir, e vamos mesmo, é muito difícil. É muito doloroso ver todos os profissionais da cultura serem criminalizados, tratados com desprezo, como se fossem pessoas desonestas.”

Cena do filme “Verlust” – Foto: Divulgação

Levando essa mesma questão do ataque à cultura para o cinema, Verlust está na programação da Mostra, que neste ano está homenageando os funcionários da Cinemateca Brasileira. Para você, qual a importância de uma instituição como a Cinemateca, ou seja, uma instituição que é responsável pela preservação e a memória do cinema brasileiro?
Nossa, acho que é o coração, o cérebro, as vísceras da nossa história cinematográfica. É a nossa memória. Os filmes que estão ali, um material tão delicado, sendo tratado por trogloditas que não têm o menor apreço. Estas pessoas querendo sufocar a Cinemateca, tirando a possibilidade de existência da Cinemateca, negando os recursos para que ela continue cuidando [do patrimônio] com seus funcionários e técnicos. É a nossa história. Um país é seu território, sua geografia, suas riquezas, mas principalmente a sua história e a sua cultura. Quem é esse país? Quando você vai conhecer um lugar, você não quer saber quanto tem disso, qual a riqueza. Você quer saber: qual a cultura? O que eles fazem aqui? O que eles dançam aqui? O que eles assistem aqui? Como eles vão para a rua? Como é o teatro deles? Essa asfixia, essa morte por asfixia que a cultura está sofrendo no Brasil é terrível. Embora a gente vá resistir, e vamos mesmo, é muito difícil. É muito doloroso ver todos os profissionais da cultura serem criminalizados, tratados com desprezo, como se fossem pessoas desonestas. Mas isso vai virar.

Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
Temos que contar as histórias da gente, ocupar os espaços todos e ter o controle do que nos interessa. Trazer uma nova forma de coexistência: uma maneira respeitosa, porém camarada, na qual os limites são respeitados e a gente se sinta à vontade para fazer o que quiser, usar o que quiser, dizer o que quiser, contar a história que a gente quiser. Talvez chegue o dia em que a gente não tenha mais que pensar: “Esse filme foi feito por mulheres, que bom, que bom, ainda bem!”. Talvez chegue o dia em que seja tudo misturado mesmo, de maneira suave, entre pretos e brancos também. Espero que esse dia chegue. Mas por enquanto, não. Por enquanto a gente tem de bater firme, se impôr sim, dizer “não, aqui não, um minuto”. Então meu conselho é: não desistam nunca, sejam felizes, sejam fortes e sejam muito mulheres, do jeito que cada uma achar e curtir ser.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Top