Shuchi Talati: “Cultura da vergonha influencia cinema”

“Uma cineasta indiana cujo trabalho questiona narrativas dominantes ligadas à gênero, sexualidade e identidade sul-asiática”. É assim que a diretora e roteirista Shuchi Talati define a si mesma, e é este o espírito de seu primeiro longa-metragem, Sempre Garotas, que estreia nesta quinta-feira (1) nos cinemas brasileiros.

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Representante do gênero conhecido como coming-of-age, Sempre Garotas acompanha a adolescente Mira durante um momento de transformação impulsionado por dois acontecimentos: sua nomeação como principal liderança estudantil de um rígido colégio interno e a chegada de um novo aluno, Sri, por quem se apaixona.

A premissa simples talvez não evidencie algumas das nuances do filme, escrito por Talati a partir do que chamou de “raiva e revolta”. Nascida em 1984, ela não estudou em colégio interno como Mira, mas também foi aluna de escolas indianas rígidas, que policiavam especialmente as garotas. Sexualidade era assunto tão tabu que, durante a adolescência, a cineasta escondeu o primeiro namorado até de amigas próximas.

“Vivemos uma cultura da vergonha e isso influencia nossos filmes, que raramente mostram mulheres como seres sexuais e com desejo”, afirmou Suchi Talati, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Nos anos 1990, muitas vezes a protagonista feminina começava usando minissaia, vestindo roupas sexy, sendo descolada, mas no momento em que se tornava ‘casável’, passava a se vestir de forma mais tradicional, ficava mais casta. Era como se a mulher tivesse de abandonar sua sexualidade para se tornar aceitável.”

Talati ambientou Sempre Garotas nos mesmos anos 1990, mas criou uma protagonista diferente, que toma as rédeas de seu despertar sexual sem que o filme a condene por isso. Em outras palavras, a menina que se masturba com um ursinho de pelúcia e quer transar com o namorado não é retratada como má ou indisciplinada, mas, sim, como exemplo de responsabilidade e excelência acadêmica.

Igualmente interessante é a personagem da mãe, Anila, que às vezes apoia, às vezes proíbe e às vezes parece querer tomar o lugar da filha no relacionamento com Sri. Fugindo das representações idealizadas que tantas vezes viu na tela, Talati sugere que uma mãe pode sentir mais de uma coisa ao mesmo tempo: amar a filha, mas ter inveja dela; torcer por seu namoro, mas competir pela atenção do namorado; comemorar a maior liberdade da nova geração, mas se ressentir de não tê-las experimentado.

A complexidade da relação de mãe e filha é a grande força de Sempre Garotas, que ganhou dois prêmios no Festival de Sundance do ano passado, um deles para a atuação da protagonista, a estreante Preeti Panigrahi. No papel de Anila está a atriz Kani Kusruti, estrela de Tudo que Imaginamos como Luz, outro filme indiano dirigido e protagonizado por mulheres que ganhou reconhecimento internacional em 2024.

Talati estava determinada a montar uma equipe majoritariamente feminina e contou com a diretora de fotografia Jih-E Peng, a montadora Amrita David e as diretoras de arte Avyakta Kapur e Arzoo Ali, entre outras profissionais. Quando não conseguiram encontrar uma mulher para o posto de gaffer (chefe da iluminação), os produtores Richa Chadha e Ali Fazal decidiram criar uma oficina para formá-las. Quarenta interessadas se inscreveram e nove foram selecionadas pela iniciativa, que recebeu o nome de UnderCurrent Lab e terá uma segunda edição, agora abrangendo outras áreas da produção cinematográfica.

Leia a entrevista com Shuchi Talati sobre Sempre Garotas:

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No seu site, você define a si mesma como “uma cineasta indiana cujo trabalho questiona narrativas dominantes ligadas à gênero, sexualidade e identidade sul-asiática”. Gostaria de saber quais são algumas das narrativas dominantes que você quer questionar, especialmente no que diz respeito à identidade sul asiática. 

Cresci numa cultura muito pudica e desconfortável com a sexualidade. Vivemos uma cultura da vergonha, e isso influencia nosso cinema, que raramente mostra mulheres como seres sexuais, que sentem desejo. Acho que está mudando, mas nos anos 1990, quando eu estava crescendo, muitas vezes a protagonista começava o filme usando minissaia, vestindo roupas sexy, toda descolada, mas no momento em que se tornava “casável”, passava a se vestir de forma mais tradicional, ficava mais modesta, casta. De certa forma, a mulher tinha de abandonar sua sexualidade para se tornar aceitável. Isto não é dito de forma explícita, mas está implícito em muitos filmes. E é algo que realmente questiono no meu trabalho. Outra coisa é a figura da mãe. Nos filmes, sempre víamos mães abnegadas, mártires, que estavam muito felizes em abrir mão de tudo pelos filhos e pelo marido. Para mim, isso não permitia que as mães fossem seres humanos completos. As mulheres da minha vida – as jovens, as mães, as avós – eram muito mais interessantes, completas e contraditórias do que as que eu via na tela. Me inspiro nas mulheres da minha vida e, ao fazer isso, acabo questionando narrativas com as quais cresci.

Sua declaração oficial sobre Sempre Garotas diz que, para você, era muito importante que Mira e Anila “não fossem definidas por suas identidades como mulheres indianas e não tivessem de representar toda a comunidade a qual pertencem”, e que você queria “permitir que elas representassem apenas sua existência peculiar e singular, e não toda a sua cultura”. Por que é importante que personagens femininas sejam específicas e singulares? Ou, para formular a mesma pergunta de um jeito diferente, o que perdemos quando criamos personagens que tentam representar toda uma comunidade ou cultura?

Acho que quando criamos personagens assim, nós os simplificamos demais. Quando os filmes vêm de outras partes do mundo, especialmente partes mais pobres, dá-se uma certa ênfase ao problema, à mensagem por trás do filme. Em primeiro lugar, acho que o cinema não é a mídia certa para fazer isso. Acho que nesse caso as pessoas deveriam escrever artigos. Um filme é bom para experimentarmos algo – o que não impede que ele carregue temas ou mensagens políticas subjacentes.

Considero meu trabalho profundamente político e acho que aborda temas importantes, ligados a feminismo, machismo, patriarcado, tudo isso. Mas não estou tentando comprovar uma tese. Os personagens não estão ali para tentar provar ou refutar meus argumentos, porque desta forma não permitirei que sejam plenos e contraditórios. Quando um filme vem da Índia as pessoas dizem: “Ah, esse filme é sobre os problemas das mulheres? Você fez esse filme porque a situação das mulheres é muito difícil?”. Sim e não. A gente não faz esse tipo de pergunta para cineastas brancos. Eles podem apenas fazer um filme sobre um personagem específico, ninguém presume que estejam tentando dizer algo sobre todos os americanos. Gostaria de tirar esse fardo dos nossos filmes. Porque aí nossos personagens e nossas histórias vão poder respirar, e ser realmente únicos.

Cena do filme "Sempre Garotas", de Shuchi Talati
Cena do filme “Sempre Garotas”, de Shuchi Talati

O seu filme retrata um relacionamento de mãe e filha bastante complexo, que envolve ciúme, rivalidade, competição, talvez até ressentimento, mas também amizade, apoio e incentivo. Devo dizer que, enquanto assistia, às vezes me senti um pouco desconfortável ou torcendo para que determinadas coisas não acontecessem. Suspeito que criar essa sensação tenha sido um pouco a sua intenção. O que você queria explorar nessa relação de mãe e filha?

Adorei saber que você se sentiu desconfortável, porque quero que assistir ao filme seja uma experiência visceral de corpo inteiro. Não quero que ninguém fique apenas sentado, distante, quero que as pessoas se envolvam, agarrem algo, cubram os olhos. E minha intenção era muito relacionada ao que você falou. Todo relacionamento é complicado. Relacionamentos próximos de amor sempre têm um pouco de ódio: de certa forma, você só pode odiar as pessoas a quem mais ama, porque são elas que mexem com você.

Mas além disso, pelo modo como a sociedade está estruturada, o relacionamento de mãe e filha é profundamente complicado. Vivemos num mundo no qual, se as coisas estão indo na direção certa – que não é sempre o caso, como estamos vendo agora -, mas se as coisas estão indo na direção certa, cada geração de mulheres conquista um pouco mais de liberdade e poder sobre sua vida. Neste contexto, como é possível que as mães não sintam nenhuma tristeza, inveja ou ressentimento, ao mesmo tempo em que se sentem felizes por suas filhas, querem que elas tenham essas liberdades e querem possibilitar essas liberdades? É um sentimento complexo. E nosso mundo também valoriza as mulheres pela juventude e pela beleza. Conforme envelhecem, elas rapidamente começam a perder status social.

Durante a escrita do roteiro, sempre considerei importante não simplificar a intenção da personagem. Essa mãe ama sua filha, vai lutar por ela como uma leoa, vai protegê-la e quer dar a ela as liberdades que não teve. Ao mesmo tempo, sente inveja da filha, se ressente dela, e gosta de receber a atenção do namorado dela e sente certa excitação com isso, porque não é de fato vista como mulher, ou mesmo como uma pessoa completa, por aqueles ao seu redor. Tentei escrever e dirigir de forma que todas essas coisas estivessem presentes e vivas.

Falando sobre seu processo de escrita, este filme têm muitas imagens que não vemos com frequência no cinema, como a de uma menina se masturbando com um ursinho, olhando sua vagina em um espelho ou depilando a perna com cera. No seu filme anterior, o curta A Period Piece (2020), uma mulher faz sexo durante a menstruação, que é uma imagem um pouco mais comum, mas também não super comum. Minha curiosidade é sobre como essas imagens informam sua escrita. Você pensa algo como: “Acho que essa imagem está faltando no cinema, então vou tentar colocá-la no meu roteiro ou escrever a partir dela”? Ou é o próprio desenvolvimento da trama que te leva a essas imagens?

Ah, isso é tão difícil de saber, especialmente num filme como esse, que foi escrito ao longo de seis ou sete anos, e levou oito ou nove até ser finalizado. Enquanto estou escrevendo, estou mudando como pessoa, estou crescendo. Então é difícil saber quais eram minhas intenções originais. Mas acho que as duas coisas estão presentes. Sou uma roteirista que começa pelos personagens, então não penso muito em imagens, não vejo visuais, cores, tomadas. Alguns diretores são muito visuais, eu sou extremamente interna e emocional, então estou escrevendo de dentro do personagem. Ao mesmo tempo, tinha a intenção explícita, neste filme, de refletir o ambiente conservador no qual essa menina está crescendo, um ambiente que condena toda expressão de desejo e sexualidade. Queria refletir esse ambiente, mas sem que a filmagem mostrasse o despertar sexual como algo vergonhoso. Então era preciso filmar esses momentos como normais, mundanos, e permitir que a menina se divertisse e tivesse poder de decisão. Não sensacionalizamos esses momentos, não sexualizamos a menina. Havia um equilíbrio entre ser honesta e emocionalmente explícita, mas não fisicamente explícita.

Os personagens deste filme estão sempre observando uns aos outros: Mira observa a mãe, a mãe observa a Mira, Mira observa os meninos, os meninos observam as meninas, a professora, a colega de quarto – todos observam e são observados. É algo que envolve a fotografia e até o próprio cenário, já que a arquitetura da casa, que não sei se era uma locação real ou não, ajuda nesse processo de observação. Como foram suas conversas com a equipe e que decisões vocês tomaram para criar esse clima de vigilância constante?

A diretora de fotografia, Jih-E Peng, é uma grande amiga. Com ela, eu tinha algumas regras. A primeira era que o filme ficasse muito próximo à perspectiva de Mira. Não vemos aquilo que ela não vê e tentamos dar a sensação de estarmos na mente dela, o que inclui essa sensação de vigilância constante. A escola é muito rígida, então, na escola, tentamos usar enquadramentos rígidos, simétricos, de forma a comunicar as regras daquele mundo.

Na casa, onde há um triângulo entre Mira, a mãe, o namorado, é como você falou: quem está olhando para quem, quem pode ver, quem está dentro e quem está fora das alianças que estão sempre mudando. Visitamos umas 50 casas antes de nos decidirmos por aquela, porque as linhas de visão da sala de estar para a sala de jantar, do quarto da mãe para o quarto da menina – tudo era muito importante para criarmos a linguagem visual de ver e ser visto, as portas e janelas que são o quadro dentro do quadro, e que às vezes também tiram a Mira de quadro. Quando o namorado e a mãe estão mais próximos e ela está de fora, usamos a arquitetura da casa para comunicar isso. A única parte criada pela direção de arte foi a parede divisória de madeira no quarto da Mira, de onde ela consegue ver o quarto da mãe. Foi algo que ajudou bastante na narrativa.

Cena do filme "Sempre Garotas", de Shuchi Talati
Cena do filme “Sempre Garotas”, de Shuchi Talati

Quando assisti a Tudo que Imaginamos como Luz, fiquei muito impressionada com o trabalho de Kani Kusruti, a quem não conhecia, apesar de ela já ser atriz há bastante tempo. E “descobrir” um artista dessa forma sempre me faz pensar em quantos outros talentos devem estar por aí, ao redor do mundo, sem que eu os conheça. Então queria te perguntar: na sua opinião, a qual mulher do cinema indiano – seja atriz, diretora, diretora de fotografia, compositora – a gente deveria estar assistindo?

São tantas que provavelmente vai me dar um branco! Mas vamos lá! Primeiro, Kani é realmente incrível, e também quero destacar Preeti Panigrahi, nossa protagonista, que acho que vai ter uma grande carreira. Richa Chadha é uma atriz incrível e a produtora de Sempre Garotas. Ela é determinada e maravilhosa, assumiu muitos riscos como atriz e também como cineasta no meu filme. Além delas, quero citar uma diretora paquistanesa que adoro, a Fawzia Mirza. Estávamos no circuito de festivais ao mesmo tempo, ela com Queen of My Dreams, que é um filme muito divertido! Ele faz alusões à estética de Bollywood e usa algumas das coisas divertidas de Bollywood, ao mesmo tempo em que é muito real, pé no chão e comovente. Em termos de tom, é uma caminhada na corda bamba. Então assistam ao filme da Fawzia!

Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?

Em primeiro lugar: levem-se a sério. Durante muitos anos, quando as pessoas me perguntavam no que eu estava trabalhando, eu dizia: “Ah, estou meio que trabalhando numa coisa aí”. Era como me sentia internamente, então era como me expressava. Mas não ter encontrado o sucesso ou não ter recebido um carimbo de pessoas e festivais tidos como importantes não quer dizer que seu trabalho não seja importante. Se você está escrevendo, você é roteirista. Então leve-se à sério. E em segundo lugar: encontrem sua comunidade. Sou parte de um coletivo em Nova York no qual há cineastas mais experientes do que eu, que estão fazendo seus segundos ou terceiros longas. Eles me deram conselhos, me apresentaram pessoas, me deram recomendações e apoio moral também. Às vezes estávamos trabalhando na mesma sala e aplicando para o mesmo edital, e perguntávamos um para o outro: “Você pode ler minha sinopse?”. Sem esse apoio, não teria conseguido realizar esse filme. Fazer cinema é muito difícil, e essa comunidade me mantém viva.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Khamkha Photo Artist

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