Rebecca Lenkiewicz sobre “Hot Milk”: “Amor pode ser poderoso combustível”

O nome Rebecca Lenkiewicz pode não soar familiar, mas é bem provável que você tenha assistido ou ao menos ouvido falar dos longas-metragens que ela escreveu. Ida (2013), dirigido por Pawel Pawlikowski, ganhou o Oscar de filme internacional ao contar a história de uma noviça que confronta seu passado. Desobediência (2017), de Sebastián Lelio, retratou o amor proibido entre duas mulheres numa comunidade judia ortodoxa; Colette (2018), de Wash Westmoreland, narrou a trajetória da célebre escritora francesa; e Ela Disse (2022), de Maria Schrader, acompanhou a investigação jornalística que revelou o escândalo Harvey Weinstein.

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Diante deste currículo, não é difícil imaginar o motivo de a produtora Christine Langan ter convidado Lenkiewicz a escrever Hot Milk, filme que chega aos cinemas brasileiros em 3 de julho e, depois, ao catálogo da MUBI. O longa-metragem adapta um romance homônimo, lançado em 2016 pela sul-africana Deborah Levy, que explora elementos presentes nos trabalhos anteriores da roteirista inglesa: protagonistas femininas, segredos familiares, amor entre mulheres, busca por liberdade.

Mas a resposta de Lenkiewicz surpreendeu a produtora: desta vez, ela só aceitaria fazer a adaptação se também pudesse dirigir. “Deste projeto”, ela teria dito, “não vou conseguir abrir mão”.

“Quando li o romance, me senti muito envolvida com aquelas três mulheres, com a combinação entre aquelas protagonistas femininas tão fortes e uma certa sensualidade”, afirmou Lenkiewicz, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Eu realmente queria que uma mulher dirigisse, e pensei que eu mesma poderia ser esta mulher, porque conseguia imaginar aquela história, conseguia senti-la.”

Antes de colaborar com Pawlikowski em Ida, seu primeiro roteiro para cinema, Lenkiewicz já tinha anos de experiência escrevendo para a televisão, o rádio e o teatro. E em 2008, tornara-se a primeira dramaturga viva a ter uma peça original (Her Naked Sin) montada no principal palco do Royal National Theatre de Londres.

Hot Milk marca uma nova fase da carreira, e a primeira vez em que acompanha a realização de um filme do início ao fim. Exibido na competição do Festival de Berlim, o longa é centrado em Sofia (Emma Mackey), uma estudante de antropologia que se sente sufocada pela mãe, Rose (Fiona Shaw), há anos acometida por uma doença que lhe provoca dores e a impede de andar, mas que médico nenhum consegue explicar. 

O filme foi rodado em Maratona, na Grécia, mas a trama é ambientada em Almería, na costa da Espanha, onde Rose passa por um novo tratamento. O médico, Dr. Gómez (Vincent Pérez), parece especialmente interessado em desenterrar histórias do passado, o que amplia as tensões entre mãe e filha. E neste momento, Sofia conhece Ingrid (Vicky Krieps), uma mulher enigmática e de espírito livre que impulsiona seu desejo por independência.

O fato de Ingrid carregar seus próprios traumas e não querer se prender a uma relação só faz com que Hot Milk não ofereça alívio nem à protagonista, nem ao espectador. A despeito da paisagem ensolarada, o clima é sufocante, e Lenkiewicz parece interessada, sobretudo, em refletir sobre a possibilidade – ou impossibilidade – de alguém extrapolar os limites da própria criação.

Leia a entrevista com Rebecca Lenkiewicz sobre Hot Milk:

Fiona Shaw e Emma Mackey em cena de "Hot Milk" - Foto: Divulgação/MUBI
Fiona Shaw e Emma Mackey em cena de “Hot Milk” – Foto: Divulgação/MUBI

Você foi inicialmente procurada para escrever o roteiro do filme, e respondeu que só escreveria se também pudesse dirigir. Segundo contam, você disse algo como: “Deste projeto eu não vou conseguir abrir mão”. Isso se deu porque você já sentia vontade de passar para a direção ou foi algo específico desta história que fez você sentir que precisava dirigir?

Foi a combinação entre as protagonistas feministas muito fortes e uma certa sensualidade. Quando li o romance, me senti muito envolvida com aquelas três mulheres. Eu realmente queria que uma mulher dirigisse, e então pensei que eu mesma poderia ser esta mulher. Porque eu conseguia imaginar aquela história, conseguia senti-la. Por isso disse, com educação, que não poderia fazer a adaptação se não pudesse dirigir. Então foi muito por causa da história, das pessoas e da prosa de Deborah Levy, que é incrivelmente feminina e se desenrola quase como no movimento de uma serpente. Foi o aspecto psicológico que me atraiu.

Eu não li o livro, nem nenhuma outra obra de Deborah Levy, mas li uma entrevista na qual ela apontou o cinema como uma de suas principais influências. Para ela, seus livros sempre têm equivalentes literários de close-ups, planos gerais, cortes rápidos de edição e tomadas aéreas. Você reconheceu essas características que a autora vê na própria escrita? E, se sim, isso influenciou sua adaptação de alguma forma?

Consigo reconhecer essas características, sim. Deborah Levy é uma escritora incrível, que entra direto na cabeça dos personagens. A diferença é que o livro é majoritariamente escrito em primeira pessoa, dentro da cabeça de Sofia. É ela comentando sobre os outros, então esses cortes de edição e tomadas de drone vêm de Sofia em suas diferentes viagens. Mas, sim, certamente há um elemento cinematográfico no livro. Certos detalhes e paisagens são descritos de forma muito visual, e acho que peguei um pouco disso. A descrição de uma fábrica de cimento próxima a um pequeno café na praia, por exemplo, me pareceu imediatamente cinematográfica.

Vicky Krieps e Emma Mackey em cena de "Hot Milk" - Foto: Divulgação/MUBI
Vicky Krieps e Emma Mackey em cena de “Hot Milk” – Foto: Divulgação/MUBI

No material sobre Hot Milk que foi divulgado à imprensa você mencionou o desejo de que as cenas filmadas na praia fossem “mais amazonas e menos Baywatch”. Gostaria que você falasse um pouco sobre isso. O que era importante na filmagem destas cenas, e quais foram as discussões e escolhas que fez junto ao diretor de fotografia para chegar ao que queria?

Eu queria que a paisagem fosse mais primitiva e menos cartão postal, e que refletisse o estado das personagens. Tivemos sorte de estar filmando na Grécia, onde às vezes o vento era muito forte, o que ajudava a criar a sensação de perturbação, de turbilhão. Christopher Blauvelt é um diretor de fotografia incrível, e nossa conversa foi sobre como a paisagem tinha de ser mais brutal do que convidativa. O sol está lá, mas o sol pode ser tão brutal quanto bonito. A água do mar é gloriosa, mas também perigosa por causa das águas-vivas que estão ali, escondidas. Então falamos bastante sobre composição, mas também sobre a gradação da cor. Queríamos dar a sensação de que a vida de Sofia ganhou cores intensas no momento em que ela se apaixonou. E também queríamos marcar as diferenças entre interior e exterior, tanto visual quanto emocionalmente.

Hot Milk é um filme que exige muito do elenco, mas vocês não tiveram tempo para ensaios. Sendo assim, como foi seu trabalho com as atrizes e como buscou construir a relação entre elas?

Trabalhei com elas individualmente e de forma muito rápida, pois conheci Emma Mackey e Vicky Krieps já na Grécia. Vicky e eu fomos ver o cavalo no qual ela ia andar em cena, e conversamos muito no caminho, e Emma e eu passamos metade de um dia juntas no hotel, falando sobre o roteiro. Com Fiona tive mais tempo de preparação, porque ela estava no projeto desde o início. Como nós duas vivemos em Londres, eu ia para a casa dela e discutíamos sobre o roteiro, sobre os relacionamentos, sobre a temperatura das cenas.

E aí havia a esperança de que uma chama se criasse entre as três. Acho que as escolhi sabendo que isso seria não apenas possível, mas também muito excitante. São três atrizes bem diferentes, mas com processos fortes e incrível energia. Então eu estava meio que esperando para ver o que ia acontecer entre elas. Estava ali caso quisessem me fazer perguntas ou trocar ideias, mas, de fato, o principal era criar um bom espaço para que elas pudessem brincar com palavras e silêncios. E foi lindo vê-las juntas. Foi frustrante não ter tempo de ensaio, mas também houve um aspecto estimulante. Por exemplo, Emma e Vicky se conheceram na praia, logo antes de gravarem. No caso desse relacionamento, em que não há história prévia, isso acabou sendo excitante. Já no caso de mãe e filha, ou seja, de Emma e Fiona, era preciso transmitir que elas tinham uma história conjunta. Mas muito rapidamente as duas foram preenchendo os vazios e se adaptando fisicamente uma à outra.

Emma Mackey e Fiona Shaw em cena de "Hot Milk" - Foto: Divulgação/MUBI
Emma Mackey e Fiona Shaw em cena de “Hot Milk” – Foto: Divulgação/MUBI

Em 2013 você disse o seguinte ao jornal The Guardian: “Me interesso pela fragilidade das pessoas tentando se conectar umas com as outras ou com algo no mundo. Aos 16 anos, já somos quem somos. Podemos mudar e melhorar. Mas muita coisa já foi plantada com essa idade.” Se eu não soubesse que isso foi dito doze anos atrás, pensaria ser uma fala sua sobre a trama de Hot Milk. Esta ideia de que formamos nossa identidade muito cedo, e de que temos capacidade limitada de escapar dessa formação – por que esta ideia segue despertando o seu interesse?

Acho que, de forma universal, as pessoas lutam com quem elas são, quem elas podem ser, quem elas eram ao nascer, o que é natureza e o que é criação. No meu caso, havia uma impressão por parte do meu pai de que eu tinha de ser artista, tinha de ter certo sucesso. Da parte da minha mãe, não havia essa pressão. Era apenas: “Seja feliz”. Acho que a gente tem de lidar com essas marcas e, no caso da Sofia, a marca vem de ter crescido sem amor incondicional. Ela tem apenas a mãe, e essa mãe é dominadora e narcisista por meio de sua dor. E é assim porque herdou a vergonha de um país. Então é muito complexo.

Mas [as personagens do filme] são pessoas que tiveram oportunidades. Algumas pessoas nascem com tão poucas oportunidades. Então como você cria forças? Quão resilientes são não apenas as mulheres, mas também as crianças, que conseguem sobreviver ao ambiente e ir fazer coisas extraordinárias? Isto me fascina, porque todos deveríamos ter oportunidades iguais ao nascer e na juventude, mas não temos. Então o que acontece? Como encontramos os recursos para pular os muros ou derrubá-los? Sophia tem uma leoa dentro dela, mas precisa que algo a desperte. E, nas estranhas circunstâncias em que ela está, esse despertar vem com o amor. Acho que se apaixonar pode ser um combustível muito forte, mesmo quando as coisas dão errado. Porque o amor coloca dentro de nós um tipo de adrenalina e de força que nos torna super-humanos e, ao mesmo tempo, absolutamente frágeis. Esta condição me fascina.

Vicky Krieps e Emma Mackey em cena de "Hot Milk" - Foto: Divulgação/MUBI
Vicky Krieps e Emma Mackey em cena de “Hot Milk” – Foto: Divulgação/MUBI

Hot Milk é frequentemente descrito como “um filme feminino”. Vi você dizer isso, as atrizes, as produtoras, críticos, jornalistas. É uma descrição apropriada, já que há muitas mulheres em frente e por trás da câmera, e que também poderia ser atribuída a Ela Disse e mesmo a Desobediência e Ida, filmes que são dirigidos por homens mas contam histórias de mulheres.

Ao mesmo tempo, hesito em chamar um filme de “feminino” porque ainda há enorme resistência e dificuldade em entender histórias sobre mulheres como universais. E, para mim, um homem também pode se relacionar, se identificar ou se comover com esses filmes. Gostaria de saber o que você pensa sobre essa questão. Como lidar com isso? Como orgulhosamente chamar algo de “feminino” sem reforçar a ideia de que é apenas para mulheres?

Sim, esta é uma questão fascinante. Hoje mesmo um psicólogo veio me dizer: “Que bom que mais histórias sobre mulheres estão sendo contadas, que bom que posso conhecê-las e me envolver com elas”. Algumas das críticas mais sensíveis do filme foram feitas por homens. E ontem à noite, um jovem americano que vive no México me abraçou chorando e disse: “Essa história é a minha”. Acho que há grande beleza nisso. E ao trabalhar neste filme, sempre tive o desejo de que fosse incrivelmente muscular. Não masculino, mas muscular. E muscular não tem sexo, é apenas a força da emoção, a força do sentimento.

Espero que os homens possam aproveitar este filme tanto quanto as mulheres, mas também celebro o fato de que, nos últimos tempos, mais histórias de mulheres estejam sendo contadas por mulheres. Alguém me perguntou: “O que é o olhar feminino? Como é diferente do olhar masculino? O que ele significa na prática, no set?”. E expliquei dando o exemplo de uma cena na qual eu tinha imaginado Vicky em um vestido longo e prateado. No entanto, ela disse que preferia usar uma parca e botas grandes. E eu disse: “Ótimo, vamos nessa”. É um tipo de fluidez que talvez não ocorresse se alguém estivesse objetificando alguém.

É complexo, né? Detesto que a separação seja feita, mas entendo porque é feita. O patriarcado é historicamente dominante e nós precisamos gritar. Fizemos muito progresso, mas ainda há trabalho pela frente. Por isso, que as mulheres chamem esse filme de feminino é algo que não me surpreende e que me orgulha. Mas é uma história universal. É uma história sobre amor e perda.

Emma Mackey em cena de "Hot Milk" - Foto: Divulgação/MUBI
Emma Mackey em cena de “Hot Milk” – Foto: Divulgação/MUBI

Tendo assumido a direção e acompanhado a realização de um filme do início ao fim pela primeira vez, o que mais te surpreendeu ou mais te marcou?

Bem, foi um processo muito difícil. Levamos sete anos para levantar o financiamento e reunir todo mundo. E mesmo quando estávamos no set, eu e as produtoras, Christine Langan e Kate Glover, sempre falávamos que estarmos ali era um milagre. Mas o que me surpreendeu foi…Eu esperava ter uma equipe, mas na verdade foi algo mais existencial do que isso. Foi uma troca tão bonita de talentos, todos os artistas, todos os chefes de departamento, elenco, homens e mulheres contribuindo com suas ideias.

Esperava ficar fechada, sozinha, meio que desviando das balas. E claro, era eu quem tinha de criar aquele espaço e assumir a responsabilidade se algo desse errado. Mas senti que era parte de um grande time que estava gentilmente empurrando aquilo montanha acima. E isso me comoveu muito. Foi algo que realmente mudou a minha vida – eu, nos meus 50 anos, dizer: “Uau, esse é o mundo da direção”. E não gostaria de dirigir em outra circunstância. É preciso que o projeto nasça em mim e, depois, ter a equipe ao meu redor.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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