Nathalie Mesén sobre “Clara Sola”: “O corpo foi nossa maior ferramenta”

É de impressionar a trajetória internacional de Clara Sola, primeiro longa-metragem da diretora Nathalie Álvarez Mesén, que estreou nos cinemas brasileiros na última quinta-feira (11). Depois de uma première mundial na Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes, na França, o filme venceu a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, representou a Costa Rica na busca por uma indicação ao Oscar, disputou duas categorias do Prêmio Platino de Cinema Ibero-Americano e ganhou cinco troféus no Guldbagge Awards, a principal premiação da indústria cinematográfica da Suécia.

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Tal trajetória reflete, em parte, a dupla nacionalidade da diretora, que nasceu na Suécia e cresceu na Costa Rica, e os múltiplos países envolvidos na coprodução do filme, que incluem, além dos dois dois já citados, Bélgica, Alemanha e França. Mas o sucesso internacional de Clara Sola também se explica na força e relevância de uma história que é ao mesmo tempo latino-americana e universal: a de uma mulher que luta pelo controle de seu corpo e de seu desejo em meio à repressão e às convenções que a cercam – familiares, sociais, religiosas.

Filmando pela primeira vez em espanhol, Mésen conta a história de Clara, uma mulher de 40 anos que vive em um vilarejo costa-riquenho ao lado da mãe, dona Fresia, e da sobrinha, Maria. A família é humilde, católica e crê que uma “visita” da Virgem tenha dado poderes curandeiros à Clara. Moradores da comunidade local fazem suas preces em torno dela e pessoas doentes viajam para encontrá-la, enquanto dona Frésia a mantém num ambiente rigidamente controlado. Clara não pode, por exemplo, ultrapassar os limites da propriedade sem acompanhante, usar maquiagem ou fazer a cirurgia que a curaria da escoliose. Não pode, sobretudo, ceder ao desejo sexual que se manifesta com frequência: se dona Frésia vê a filha se masturbando durante uma cena mais quente da novela, cobre seus dedos com pimenta, ou coisa pior.

Imagem do filme “Clara Sola”, de Nathalie Álvarez Mesén

A chegada de Santiago, um jovem que faz passeios turísticos com o cavalo de dona Frésia, lança Clara em um processo de amadurecimento e libertação. A jornada da personagem foi inspirada nos questionamentos da própria diretora, que escreveu o roteiro ao lado da colombiana Maria Camila Arias, coautora do celebrado Pássaros de Verão (2018). Cresci cercada por mulheres que via como muito poderosas. Minha avó era a chefe da família, mas sempre me pareceu submetida a Deus, uma figura masculina, e às ideias e normas que a religião católica propaga sobre o que uma mulher deve ser”, afirmou Mésen, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Conforme fui crescendo, percebi que não concordava com essas ideias ou não as achava saudáveis, e comecei a pensar sobre o motivo de ainda estarem sendo reproduzidas pelas mulheres tão poderosas da minha família.”

O roteiro original previa uma Clara cerca de dez anos mais jovem, e foi reescrito especialmente para que a atriz Wendy Chinchilla Araya pudesse interpretar a protagonista. Dançarina profissional, mas estreante no cinema, ela colaborou de perto com Mésen para chegar às emoções e aos movimentos de uma personagem que é humana, mas tem profunda conexão com os animais e a natureza. “O corpo foi nossa principal ferramenta”, contou Mésen, que define Clara como “20% loba”. “Se um lobo não está feliz, vai morder sua mão. Queria que Clara tivesse essa mesma força para dizer não, ser honesta consigo mesma e não ter vergonha dos seus desejos e das vontades de seu corpo, assim como os lobos não têm.”

Leia os principais trechos da entrevista com Nathalie Álvarez Mesén:

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Como foi sua colaboração com Wendy para chegarem à Clara? Gostaria de saber mais sobre o processo de vocês, especialmente no que diz respeito ao modo como ela trabalha o corpo.

Foi um trabalho muito especial. Wendy é dançarina contemporânea e eu venho do teatro físico e da mímica, então o corpo foi nossa principal ferramenta. Combinamos muitas coisas que eu tinha usado no teatro e ela, na dança, e encontramos a personagem principalmente por meio da imagem interna de uma loba. Fomos experimentando diferentes etapas, de uma Clara 100% humana para uma Clara 100% loba. No final, chegamos a uma Clara 20% loba. É este lado loba que a torna tão intuitiva, forma sua conexão com a natureza e a faz não levar desaforos [risos]. Sabe como é, se um lobo não está feliz, vai morder sua mão. Queria que Clara tivesse essa mesma força para dizer não, ser honesta consigo mesma e, principalmente, não ter vergonha dos seus desejos e das vontades de seu corpo, assim como os lobos não têm. Trabalhamos com outras imagens ligadas à natureza também. Clara tem escoliose, e pensamos em raízes internas que mantêm seu corpo na posição em que está. Pensamos em imagens de água e fogo dentro do corpo, fomos trabalhando diferentes coisas em cada cena.

Imagem do filme “Clara Sola”, de Nathalie Álvarez Mesén

A natureza tem papel-chave no filme. Como você trabalhou com a diretora de fotografia Sophie Winqvist e a equipe de som liderada por Charles de Ville para capturar as imagens e sons que são tão chave para a compreensão da personagem e da narrativa?

No caso da fotografia, queríamos que não houvesse muita separação entre Clara e a natureza, porque uma é parte da outra. A ideia era passarmos de forma imperceptível da Clara para a natureza não humana que está na tela. Também queríamos que Clara estivesse presente de alguma forma em todas as cenas, mesmo quando não está presente em imagem. Então há momentos em que nos movemos apenas pela natureza mas, pelo som, notamos a presença de Clara, sua respiração bem próxima de nós. Isso também vale para a trilha sonora [de Ruben De Gheselle] que está sempre ligada àquilo que a personagem está vivendo.

Inicialmente o roteiro previa uma Clara mais jovem, mas você alterou a idade da personagem porque queria trabalhar com Wendy. O que esta mudança representou no desenvolvimento do texto? Foi apenas um pequeno detalhe ou algo que realmente impactou a história e suas ideias?

Na época pareceu uma mudança enorme, pois precisei alterar a dinâmica da família e adicionar personagens. No início, por exemplo, Clara tinha uma irmã e não uma sobrinha. No entanto, percebi que a mudança de idade tornava o filme mais complexo, de um jeito que me interessava, e que de certa forma não faria diferença, porque Clara era mais do que a sua idade. Realmente queria muito trabalhar com Wendy, não conseguia ver o filme existir sem ela. Então, no fim das contas, foi uma mudança simples.

O filme é centrado em uma família de mulheres, mas a presença do patriarcado é muito forte, como no ritual da festa de 15 anos, onde as meninas são valorizadas principalmente pela beleza, ou no modo como o desejo feminino, e especialmente a masturbação feminina, é punida. Fale um pouco sobre este aspecto da história e por que quis abordá-lo.

Cresci cercada por muitas mulheres que sempre me pareceram poderosas, inclusive por causa da posição que tinham na família. Minha avó, por exemplo, era a chefe de uma grande família. No entanto, ela sempre me pareceu submetida a Deus, que é uma figura masculina, e às ideias e normas que a religião católica propaga sobre o que uma mulher deve ser. Conforme fui crescendo, percebi que não concordava com essas ideias ou não as achava saudáveis. E comecei a pensar sobre por que tais ideias ainda estavam sendo reproduzidas por estas mulheres tão poderosas da minha família. Esta foi a principal questão que nos fez escrever Clara do jeito que escrevemos. Minha corroteirista, Maria Camila Arias, é da Colômbia, portanto também latino-americana, e encontramos semelhanças nas nossas memórias e no modo como olhávamos para nossas famílias.

Imagem do filme “Clara Sola”, de Nathalie Álvarez Mesén

Você não conhecia a Maria Camila, cujo trabalho foi recomendado a você por um dos produtores do filme. Como foi a colaboração entre vocês duas?

Quando comecei o projeto do filme, também estava começando um mestrado. Pensei que, sendo realista, não seria possível fazer as duas coisas sozinha e ao mesmo tempo. Também achava que precisava de alguém com pontos fortes diferentes dos meus. Li alguns trabalhos de Maria Camila, tive muita química com ela, então falei: ‘vamos nessa’. E foi ótimo. Nunca sentamos juntas para escrever: sempre passamos o roteiro de uma para a outra e sempre trabalhamos à distância, por Skype, mesmo em se tratando de tempos pré-pandêmicos. Na época ela morava no Canadá e eu, nos Estados Unidos, e só tivemos três dias inteiros juntas em Nova York. Depois desses três dias, nunca voltamos a nos ver, o que é esquisito. Mas apesar da distância, foi uma ótima colaboração. Estou muito feliz com nossa parceria.

Nem todo cineasta aceitaria colaborar com uma pessoa que não conhecia no roteiro de seu primeiro longa. Quais as vantagens de ter outra pessoa trabalhando na história que você criou?

Acho que você ganha mais perspectiva. Nunca será possível ser totalmente objetiva, mas ficar trocando o roteiro com alguém te deixa menos cega. No momento estou escrevendo sozinha e tem me parecido muito difícil conseguir ter distância [em relação ao texto]. Cada um é de um jeito, mas eu adoro colaborar com outras pessoas. Trabalho de forma mais rápida e acho que dois cérebros têm ideias melhores do que apenas um.

O filme foi selecionado para Cannes, ganhou prêmios na Suécia, venceu a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e foi escolhido para representar a Costa Rica no Oscar. Por que você acha que esta história se relaciona tão bem com plateias de diferentes partes do mundo?

Não sei, a plateia é que deve dizer [risos] Estou feliz que o filme ecoa dessa forma e consegue viajar tão bem. Espero estar espalhando uma mensagem de cura, de cura interna ou revolução interna, que nos permita criar mudanças em nossas vidas, ainda que muito pequenas, e que nos faça aceitar melhor quem somos e os desejos que temos. Talvez seja por isso [que diferentes plateias se identificam com o filme]: todos aprendemos algo quando criança que talvez não seja tão bom e contra o qual temos de lutar mais tarde. Depois de um tempo já não são as outras pessoas – nós mesmos internalizamos certas normas que talvez não sejam boas. Isto pode acontecer em qualquer parte do mundo e também independentemente do gênero. Me surpreendi em ver que tanto um homem suíço quanto uma mulher iraniana puderam se conectar com Clara de forma profunda e aplicar o que ela vive no filme para experiências que tiveram em suas vidas. Talvez as experiências pareçam diferentes, mas as emoções os conectam com a personagem de alguma forma. Nesse sentido, é um pouco triste, pois significa que o patriarcado está em todos os lugares. O filme será relevante em qualquer lugar porque fala sobre os danos causados pelo patriarcado e o quanto ele tem nos custado durante gerações.

Clara Sola é uma coprodução que envolveu cinco países e 20 fontes de financiamento, segundo uma reportagem publicada no site do Festival de Roterdã. Isso foi desafiador para você? Como manter sua visão criativa quando se está lidando com tantas pessoas, empresas e culturas, principalmente sendo uma diretora estreante no longa-metragem?

Na verdade foi fácil. Eu e Nima Yousefi, o produtor com quem comecei o projeto, fomos muito cuidadosos em relação às pessoas com quem íamos trabalhar. Éramos muito claros quanto ao que queríamos fazer e apenas trouxemos pessoas que acreditavam na nossa visão e compartilhavam essa visão. Filmei na Costa Rica, onde os produtores locais foram super ativos e me ajudaram muito, e depois fiz a pós-produção na Bélgica com uma equipe incrível. É ótimo porque, quando você consegue financiamento de um país, tem de gastar um pouco do dinheiro lá e trabalhar com alguns artistas de lá. Isto inspira novas colaborações: provavelmente nunca teria encontrado alguns dos meus colaboradores se não fosse por esse sistema, então sou muito grata. Também tive ótimos produtores, que reuniam todos os retornos, passavam para mim e eram muito abertos na hora de me ouvir. Então para mim funcionou, mas sei que não é sempre o caso. Tenho colegas [em situação similar] que tiveram de viajar muito de país para país, o que é mais difícil. Mas minha experiência foi ótima.

Imagem do filme “Clara Sola”, de Nathalie Álvarez Mesén

Este foi o primeiro filme que você filmou em espanhol e na América Latina. Foi diferente?

No começo estava nervosa em relação a alguns dos termos cinematográficos, pois apesar de ter crescido na Costa Rica, só tinha filmado na Suécia e nos Estados Unidos. Mas antes de as filmagens começarem voltei a morar na Costa Rica por cerca de um ano, então pude conhecer bem minha equipe e as pessoas da indústria cinematográfica local. No set, já estava me sentindo em casa. Foi muito natural, muito bom, e não foi diferente. Quer dizer, culturalmente é sempre diferente filmar em um lugar ou em outro, mas estava muito feliz em fazer meu primeiro filme em espanhol. O que, aliás, não foi algo que planejei. Apenas aconteceu porque Clara, desde o momento de sua concepção, sempre foi uma mulher costa-riquenha, e na Costa Rica falamos espanhol.

A Suécia é considerado o país mais avançado no que diz respeito à igualdade de gênero no audiovisual, principalmente por causa do trabalho feito por Anna Serner quando esteve à frente do Instituto de Cinema Sueco. Na prática, como é ser mulher no audiovisual de lá? E na Costa Rica, há debates e ações acontecendo também?

Na Suécia há muitas informações, muitos estudos sendo feitos, muita conversa e conhecimento sendo compartilhado. O Instituto de Cinema Sueco coleta dados há muito tempo e há grupos como a Women in Film and Television em todas as principais cidades do país. Não sou muito ativa nas discussões porque não filmo lá faz bastante tempo. Na verdade, desde que filmei meus curtas, que não tiveram financiamento público. Tenho uma proximidade maior com a comunidade da Costa Rica, onde há um grupo muito forte de diretoras que são conectadas e ativas politicamente, principalmente quando o apoio à cultura fica ameaçado. É uma indústria menor, então é mais fácil para as pessoas ficarem em contato e se organizarem. Ao mesmo tempo, o sistema de apoio público é mais instável: não sabemos se vai haver apoio, quanto de apoio, para quantos filmes. Então isso também faz com que a mobilização se torne mais necessária.

Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?

Esta pergunta é muito difícil porque depende. Basicamente, depende dos privilégios que você tem, porque fazer cinema é um privilégio. Tive o privilégio de poder estudar na Suécia, de viver em um país onde é possível fazer um empréstimo e ir cursar mestrado em Nova York, uma possibilidade que nem todo mundo tem. Este é um caminho possível, o caminho do estudo. Outro caminho é aquele em que você aprende sozinha ou em grupos. Conheço muitos grupos de homens que começaram juntos quando jovens, fazendo curtas em seus celulares numa espécie de rede de apoio. Um trabalha de graça para o outro, e assim eles vão aprendendo e crescendo. Por alguma razão, não vejo tantos grupos como estes que sejam formados por mulheres, mas talvez isso esteja mudando com as novas gerações e o maior acesso às câmeras. Em resumo, não sei se tenho um bom conselho para dar, pois cada um meio que encontra seu caminho e há muitos caminhos que você pode encontrar para contar uma história. Se fosse para dizer uma coisa, seria para ajudarmos umas às outras. Se você aprendeu algo e tem a oportunidade de ser mentora de alguém, faça isso. Se está em posição de privilégio, crie espaço para outra pessoa. Precisamos criar espaços para nós mesmas e também para as outras. É importante ser mais inclusiva e entender que outras vozes e outras histórias importam.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Tristan Fewings/Getty Images for BFI

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