Mounia Meddour fala sobre “Papicha”: “Discutir o passado é fundamental”

Faz mais de um ano que Papicha, primeiro longa de ficção da diretora Mounia Meddour, chegou aos cinemas do Brasil, e quase dois desde que o filme fez sua estreia mundial do Festival de Cannes. No entanto, frequentes comentários nas redes sociais indicam que este forte drama ambientado na Argélia dos anos 1990 ficou na memória de muita gente e segue sendo descoberto por novos espectadores.

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Disponível no streaming do Telecine, Papicha foi livremente inspirado na juventude da própria diretora durante a Guerra Civil argelina, um longo conflito armado entre o governo e diferentes grupos rebeldes islâmicos que teve início em 1991. No filme, Nedjma (a ótima Lyna Khoudri) é uma talentosa estudante que usa a moda para se expressar em uma sociedade conservadora e machista. Quando sua família é abalada por uma tragédia, ela decide desafiar as convenções organizando um desfile de moda com suas amigas.

A história de Nedjma não é exatamente a de Meddour, mas a diretora estudou nos anos 1990 em um campus universitário parecido ao do filme, em meio ao crescimento do conservadorismo e da violência. “Quando tinha 17 anos, minha família decidiu deixar o país”, disse a cineasta, em entrevista por e-mail ao Mulher no Cinema. “Os intelectuais estavam na linha de frente e o meu pai, também cineasta, recebeu ameaças.”

Mounia Meddour no set de “Papicha”, filme disponível no streaming do Telecine

Foi na França que a família se estabeleceu e onde Mounia estudou cinema, decidida a seguir a mesma profissão do pai, Azzedine Meddour. A diretora, que hoje tem 43 anos, começou no documentário e lançou dois longas do gênero – La cuisine en héritage (2010) e Cinéma algérien, un nouveau souffle (2011) – antes de realizar Papicha, uma coprodução da Argélia com França, Bélgica e Catar.

Embora o filme tenha sido rodado na Argélia, parcialmente financiado pelo país e escolhido para representá-lo no Oscar, a estreia nos cinemas, prevista para setembro de 2019, foi cancelada sem explicações. A diretora especula que as eleições presidenciais marcadas para dezembro tenham tido algo a ver com a decisão, assim como o fato de ela e as atrizes do filme terem apoiado publicamente o Hirak, movimento de contestação popular na Argélia. Um mês antes de Papicha ser exibido em Cannes, protestos que tomaram o país levaram à renúncia de Abdelaziz Bouteflika, presidente durante 20 anos.

Abaixo, leia as respostas de Mounia Meddour para as perguntas enviadas pelo Mulher no Cinema. Papicha está disponível no streaming do Telecine, que oferece os primeiros 30 dias de acesso grátis a novos assinantes. Para saber mais informações e fazer seu cadastro, clique aqui.

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Papicha é seu primeiro longa-metragem de ficção. O que você trouxe da sua experiência prévia com o documentário para este projeto?
Este tema estava em mim havia muitos anos, mas precisava de um tempo para poder me dedicar inteiramente a ele. Precisava ter mais perspectiva. Precisava, talvez, de um período de luto. E também precisava construir minhas próprias armas: estudar roteiro, encenação, direção de atores etc. Uma vez que comecei [a desenvolver o tema], decidi transmitir essa experiência em forma de ficção. A escrita se deu de forma instintiva, rápida, compulsiva, quase como num ditado. Queria ser fiel aos detalhes, às memórias e à música daquele tempo.

Lyna Khoudri em cena de “Papicha”, disponível no streaming do Telecine

A interpretação de Lyna Khoudri é um dos pontos fortes do filme. Como você chegou à ela?
Insisti muito para que minha heroína fosse argelina. Quando conheci Lyna, fui imediatamente cativada por sua força e fragilidade. Gostei da química entre estas características. Ela tem inocência e entusiasmo, ao mesmo tempo que também tem um rigor formidável e uma necessidade de verdade. Quando conversei com ela, descobri que sua história era parecida com a minha. O pai dela era jornalista, e sua família teve de deixar a Argélia nos anos 1990. Ela teve de reconstruir tudo, assim como eu. Nenhuma outra atriz poderia entender Nedjma tão bem. Lyna e eu trocamos, preparamos, ensaiamos e refinamos os detalhes e os diálogos – mesmo quando já estávamos no set. Construímos e descontruímos as reações e emoções criando níveis emocionais que foram muito úteis na hora de rodar, já que era preciso filmar fora da ordem [prevista no roteiro].


“A Argélia com certeza não esqueceu os traumas daquela década. Sempre que discutia o filme com as pessoas, tanto as da equipe quanto as que encontrava nas ruas, sentia uma necessidade crucial de transmitir. Falar sobre o assunto é fundamental para evitarmos cair em novos excessos.”


Acompanhei pela imprensa internacional que a estreia na Argélia foi cancelada pelas autoridades. O filme chegou a estrear no país? Alguma explicação foi dada a você?
Infelizmente as autoridades cancelaram a estreia, que estava prevista para 16 de setembro de 2019, sem dar nenhuma declaração oficial. Mas havia uma eleição se aproximando, e o filme se passa durante a Guerra Civil, um tempo muito ruim. Acho que eles não queriam que contássemos histórias deste tempo. Além disso, quando fomos ao Festival de Cannes, as atrizes e eu usamos broches nos nossos vestidos que diziam que estávamos ao lado do povo argelino. Por que não estaríamos? Mas acho que o governo notou e não gostou. Por fim, é um filme que aborda o modo como as mulheres são tratadas, um tema do qual eles com certeza não gostam.

Imagem do filme “Papicha”, dirigido por Mounia Meddour

Você diria que o filme, embora ambientado nos anos 1990, dialoga com a situação atual das mulheres na Argélia e em diferentes partes do mundo? De que forma?
A Argélia com certeza não esqueceu os traumas daquela década, mas as pessoas precisam exorcizar esse drama, mesmo vinte anos depois. Sempre que discutia o filme com as pessoas, tanto as da equipe quanto as que encontrava nas ruas, sentia uma necessidade crucial de transmitir. Falar sobre o assunto é fundamental para evitarmos cair em novos excessos. Hoje, o que a população argelina denuncia é o mau gerenciamento econômico e social do país. É por isso que as pessoas estão exigindo mudança. Aprendemos lições a partir da história – afinal, foram mais de 150 mil mortes [durante a Guerra Civil]. As queixas já não são necessariamente religiosas. As pessoas simplesmente querem uma vida melhor.

Gosto muito dos filmes conhecidos como “coming of age”, com protagonistas jovens em um momento crucial de amadurecimento, e especialmente quando eles são sobre meninas. Fiquei curiosa em saber se você também é fã do gênero. Se sim, quais alguns dos seus títulos favoritos?
Sim, gosto muito de filmes de coming of age e que nos levam a um momento em que a vida está mudando de fase. O cinema sublima essa passagem perfeitamente porque destaca as emoções e os corpos que estão se transformando. Alguns filmes de que gosto são Aquário (2009), de Andrea Arnold; Mommy (2014), de Xavier Dolan; Elefante (2003) e Paranoid Park (2007) de Gus Van Sant; Cinco Graças, de Deniz Gamze Ergüven (2015); Amor Bandido (2012), de Jeff Nichols; e Indomável Sonhadora (2012), de Benh Zeitlin.

Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
Espero que este filme abra portas para que outras mulheres se sintam livres para contar suas histórias. É comum dizermos que por trás de todo homem há uma mulher, mas por trás das mulheres também existem homens. No meu caso, o homem que está comigo é o meu pai. Um pai que foi cineasta e que me deu sua paixão, sua coragem e sua determinação para contar histórias. Acho que hoje, dando as mãos, homens e mulheres podem construir um mundo universal, forte e poderoso.


* Este texto foi escrito por Luísa Pécora, criadora do Mulher no Cinema, e patrocinado pelo Telecine

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