‘México tem histórias incríveis a cada esquina’, diz diretora de ‘A Camareira’

Em 1981, a fotógrafa e artista plástica francesa Sophie Calle passou três meses trabalhando como camareira em um hotel de Veneza, na Itália. O resultado da experiência foi o livro Hotel, no qual tirou fotografias de roupas, objetos e lixo deixados pelos hóspedes para imaginar quem eram aquelas pessoas e que tipo de vida levavam.

Este livro é a grande inspiração de A Camareira, filme da mexicana Lila Avilés que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (14). Em seu primeiro longa-metragem, a diretora adaptou uma peça que escrevera a partir das fotos de Calle e de sua própria pesquisa e convivência com camareiras de hotéis. No centro do roteiro, desenvolvido em parceria com Juan Carlos Márquez, está Eve (Gabriela Cartol, muito bem no papel), a reservada funcionária de um hotel mexicano de luxo.

Estreias: Os filmes escritos, dirigidos e estrelados por mulheres que chegam às salas
Leia também: Mulheres dirigiram 30% dos candidatos ao Oscar de filme internacional
Apoie: Colabore mensalmente com o Mulher no Cinema e acesse conteúdo exclusivo

Mãe de uma criança pequena, Eve trabalha duro e acumula horas extras em busca de uma prometida promoção. Como a fotógrafa francesa, também a camareira do filme busca um pouco de poesia observando os pertences e o lixo dos hóspedes, que em geral não notam sua presença ou a tratam com desdém. “Queria criar uma personagem feminina com muito protagonismo, que tivesse muita vontade de seguir adiante, que tivesse ambições”, afirmou Avilés, em entrevista por e-mail ao Mulher no Cinema. “Ela é retraída, mas pouco a pouco, conforme a história progride, vai se abrindo para a vida.”

A Camareira é um filme de poucos diálogos, nenhuma trilha sonora e permeado por enquadramentos que nem sempre revelam o cenário ou as personagens por inteiro. A ação nunca sai do hotel, e o contraste entre os ambientes internos – os quartos dos hóspedes e as dependências destinadas aos funcionários – faz um constante comentário sobre a desigualdade social no México e na América Latina. 

As filmagens foram feitas em 17 dias e financiadas em parte pela própria cineasta, que antes de A Camareira se dedicava à carreira de atriz e diretora de teatro. Após passar por dezenas de festivais, o longa foi escolhido para representar o México no Oscar e pode fazer de Avilés a primeira diretora mexicana a disputar o troféu de melhor filme internacional (novo nome da categoria filme estrangeiro). Leia a entrevista:

Você trabalhou durante anos neste filme e financiou parte do orçamento com suas próprias economias. Como se sente em, agora, estar representando o México na busca pelo Oscar?
É uma felicidade muito grande! O México tem a tradição de fazer bom cinema, então é uma honra ser escolhida pelo meu país para representá-lo no Oscar e também no Goya [o Oscar da Espanha].

Como se deu a sua convivência com camareiras e como ajudou na construção da protagonista?
Vi o livro Hotel, da fotógrafa Sophie Calle, sobre a experiência de ser camareira em Veneza, na Itália. Fiquei com uma grande curiosidade quanto à possibilidade de criar uma história a partir disso. Sou filha de uma mãe para quem a limpeza sempre foi algo relaxante, uma forma de reorganizar a vida. Durante muitos anos conversei com várias camareiras e elas tinham realidades bem diferentes umas das outras, como acontece com todos os seres humanos. Mas a verdade é que queria criar, junto com Juan Carlos Márquez, uma personagem feminina com muito protagonismo, que tivesse muita vontade de seguir adiante, que tivesse ambições. Ela é retraída, mas pouco a pouco, conforme a história progride, ela vai se abrindo para a vida.

O hotel é um cenário e um personagem. Como foi filmar naquele espaço?
Foi um desafio. Para mim, era importante não mudar muito de locação, para que o espectador fizesse o exercício de reconstruir, a partir da personagem central, o mundo que a envolve. Seja por dentro ou por fora.

O filme diz muito sobre o México e a América Latina, mais até pela forma do que pelos diálogos. Fale um pouco sobre as decisões formais que você tomou para contar esta história. O que motivou, por exemplo, a decisão de não usar trilha sonora?
A verdade é que o filme se deu de forma muito natural. Acho que o fato de eu não ter estudado cinema formalmente por um lado me traz certas limitações, mas por outro me traz muitas liberdades. Me interessava que Eve fosse acompanhada pelos espectadores o tempo todo. Que não houvesse tanta necessidade de ver, e que se escutassem os silêncios. Às vezes temos uma ideia de quem são as pessoas, mas a verdade é que nunca sabemos realmente quem é o outro. Assim, a montagem foi construindo o ritmo do filme. Sobre a trilha sonora, acho que a música é tão poderosa que também pode acabar nos enganando. Não é que sempre vou trabalhar sem música: amo filmes que têm e que não têm trilha sonora. Mas sabia que este filme tinha de ser assim. Era preciso escutar à protagonista e aos outros. Um exercício de atenção. A mim, este parece ser o poder do cinema.

Mulheres trabalhadoras estão no centro de outros filmes mexicanos recentes, como Roma e O Umbigo de Guie’dani. Acredita se tratar de uma coincidência ou vê uma crescente atenção e interesse por personagens femininas que permitam amplas discussões sociais?
Acredito que quanto maior a diversidade, maior a riqueza. O México tem histórias incríveis em cada esquina. Somos um país de muitas tonalidades, em todos os sentidos. Não há apenas histórias de violência, mas também histórias de amor, onde habitam a ternura e a necessidade de uma mulher de poder seguir adiante. Mas isso pode ser transportado a qualquer outro universo. Qualquer pessoa tem a capacidade de fazer uma viagem ou de tentar alcançar algo. No fim das coisas, são estas aventuras que nos fazer crescer.

Ouvimos falar muito sobre os cineastas mexicanos homens, mas não tanto sobre as mulheres. O que você pode contar sobre como é ser uma diretora de cinema no México?
Eu adoraria que não fosse mais preciso dizer como é ser uma mulher no cinema, ou em qualquer outra área. Em meu caminho, penso que foi importante o momento em que decidi me tornar cineasta, porque tinha mais maturidade para dizer algo importante. Mas em relação à maior abertura que o mundo está dando à diversidade, penso que isto é vital não apenas para o cinema quanto para o planeta. O equilíbrio de perspectivas é o que nos ajuda a nos reconhecermos nos outros. O cinema é tão maravilhoso e vital por nos dar a capacidade de olharmos com profundidade. É um espelho. Não importa se você é um homem em Uganda ou uma mulher mexicana ou um transexual canadense. A língua, a cultura, as histórias e os personagens nos conectam. Somos parte de algo mais poderoso que chama humanidade. Mas é claro que apoio que mais e mais mulheres façam cinema. Cinema com profundidade.


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

Deixe um comentário

Top