Film TikTok: Como as mulheres estão movimentando a criação de conteúdo nas redes

Quando a pandemia começou, Mariana Rosa se viu como grande parte das pessoas: isolada em casa e com compromissos profissionais adiados ou cancelados. Até então, ela dizia que seu ofício era o de atriz e que precisava receber um texto pronto para poder trabalhar. Mas em confinamento, e lidando também com o fim de um relacionamento, ela decidiu escrever sobre o que estava sentindo. Para sua surpresa, gostou do resultado e decidiu gravar um vídeo e publicá-lo no Instagram. “Foi como se uma porta se abrisse”, contou, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Entrei num fluxo criativo e começaram a vir ideias e textos sobre várias coisas.”

Em Londres, bem longe do apartamento de Mariana em São Paulo, a inglesa Pavan Bivigou se encontrava em situação similar. Redatora freelancer, ela estava presa em casa e sentindo o tédio crescer, em parte pela dificuldade de realizar aquela que sempre foi uma de suas atividades favoritas: ver filmes. Em busca de uma coisa a mais para fazer, e de uma tela a mais para rolar, ela fez o download do TikTok e teve a ideia de um projeto capaz de reacender seu amor pelo cinema e realizar o antigo desejo de aprender a editar vídeos. “Meu pensamento foi: e se eu assistir a um filme, fizer um pequeno vídeo sobre ele e publicar no TikTok?”, relembrou. “Vai ser uma forma de me estimular e de ter um diário do que vi durante a pandemia.”

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Entrevista: Pavan Bivigou conta como é fazer crítica de cinema no TikTok

Mariana e Pavan são apenas duas de muitas mulheres que começaram projetos em vídeo nas redes sociais durante a pandemia do novo coronavírus (Covid-19). Utilizando os formatos curtíssimos do TikTok ou do Reels no Instagram, elas encontraram suas próprias plateias sem depender da aprovação ou da mediação de instituições, veículos ou mesmo outros profissionais.

O TikTok tem sido uma plataforma especialmente fértil, dada a explosão de popularidade do aplicativo durante a pandemia. Com mais de 1 bilhão de usuários ativos, trata-se não apenas da rede social que mais cresce no mundo, mas também da marca que mais cresce, de acordo com o ranking Global 500 da consultoria Brand Finance, divulgado em janeiro. Em um relatório preparado para anunciantes, e obtido pelo jornal americano The New York Times, o TikTok afirmou que usuários da chamada Geração Z, com idade entre 18 e 24 anos, assistem diariamente a cerca de 233 vídeos na plataforma.

O mesmo relatório aponta que mulheres entre 25 e 34 anos passam cerca de 60 minutos por dia no TikTok, e diferentes levantamentos afirmam que o público feminino é maioria entre os usuários. A presença brasileira também é significativa: segundo estudo da consultoria alemã Statista, o Brasil é o segundo país que mais usa o TikTok no mundo, atrás apenas da China, onde o aplicativo foi criado.

Mais que dancinha

O perfil jovem do TikTok pode afastar aqueles que já passaram dos trinta anos e que associam a rede social a memes e vídeos de adolescentes dançando. Era o caso da própria Mariana, 34, que começou seu projeto no Instagram – primeiro fazendo vídeos mais longos, no formato IGTV, e depois passando para os conteúdos bem mais breves do Reels, essencialmente uma cópia do TikTok. “Tinha um pouco de preconceito, achava que o TikTok era coisa de jovenzitos, de dancinha”, assumiu a atriz, que hoje tem mais de 91 mil seguidores no aplicativo. “No entanto, descobri que o TikTok tem uma comunidade incrível. As pessoas não têm receio de te seguir, de curtir, de debater. Elas consomem o conteúdo de forma mais voraz e há mais retorno.”

@rosamarirosa Embalagem ♡ #sucodecaixinha #tiktokbrasil #embalagem #humor ♬ som original – Mariana Rosa


Embora seja difícil definir ao certo como funciona o algoritmo do TikTok (a empresa diz se basear em qualificações diversas, incluindo engajamento, comentários, hashtags e tempo assistido), sabe-se que o aplicativo estimula o “vício” dos usuários ao oferecer uma sequência interminável de vídeos, que aparecem um acima do outro. Quanto mais você assiste, mais e melhores recomendações recebe, em um feed que está mais focado em diversão e entretenimento do que em conectá-lo às publicações de amigos e familiares. Aliás, há diferentes feeds: “Seguindo” reúne publicações de perfis que você já conhece; “Para Você” traz recomendações do algoritmo; e “Descobrir” organiza vídeos que usam hashtags e efeitos especialmente populares.

Não é difícil, portanto, encontrar usuários com interesses parecidos com os seus. E assim como o termo “Film Twitter” reúne as pessoas que comentam sobre cinema no Twitter, também o “Film TikTok” surgiu como expressão agregadora de um grupo (e como uma hashtag que ultrapassa 3,3 bilhões de visualizações). A diferença crucial é que, enquanto o Twitter é uma rede social essencialmente de texto, o TikTok aposta nos vídeos, permitindo diálogo direto com os filmes. Mais do que isso, o aplicativo também facilita a criação de conteúdo em vídeo, oferecendo ferramentas intuitivas de edição que incluem filtros, legendas e trilha sonora.

Mariana não necessariamente usa os recursos do TikTok, mas faz todo o processo de filmagem e edição direto no celular. Seus vídeos podem ser poéticos e abordar temas sérios, ou serem esquetes cômicas, como a série que mostra a conversa da dona de uma empresa com sua funcionária: enquanto a chefa fala sobre um novo produto ou ação de marketing, a outra tenta em vão explicar como a ideia é enganosa e prejudicial ao consumidor. Mariana interpreta as duas personagens e faz todo o resto: roteiro, direção, maquiagem, figurino, filmagem e edição. “Não há um processo criativo definido”, contou. “Às vezes parto de uma ideia para um texto, às vezes de um acessório que quero usar em cena ou da vontade de experimentar uma estética que me interessa.”

A comédia também é bastante utilizada pela atriz Luciana Paes, conhecida por seus papéis em filmes como Sinfonia da Necrópole (2014), de Juliana Rojas, e O Animal Cordial (2017), de Gabriela Amaral Almeida. Durante a pandemia, ela começou a fazer vídeos curtos, alguns interpretando personagens como “a blogueirinha”, outros usando o TikTok para inserir áudios engraçados em imagens de animais. Republicando os vídeos no Instagram, ela viu seu número de seguidores crescer rapidamente e ultrapassar 76 mil.

@madelaineturner happens all the time ✂️ #shortfilm #fyp ♬ original sound – Madelaine

Entre as usuárias americanas, o Film TikTok reúne perfis como o de Madelaine Turner, que publica curtas-metragens escritos e dirigidos por ela mesma (veja um deles acima); o da diretora de fotografia Christina Dobre, que faz vídeos de bastidores dos sets em que trabalha e dá dicas para quem está começando; e o da estudante Kristen, que destaca filmes e artistas asiáticos e asiáticos-americanos.

No perfil de Pavan Bivigou é bem mais comum ver imagens dos filmes sobre os quais ela comenta do que imagens dela mesma. Há vídeos de crítica, com cenas do trailer e um texto opinativo escrito e narrado por ela, e vídeos temáticos, com reflexões sobre a obra de determinado artista, o uso de uma cor ou acessório em cena ou momentos musicais marcantes do cinema. Além do poder de síntese, chama a atenção a aposta em um ritmo menos frenético do que aquele que tende a estar associado ao aplicativo. “Acho que muita gente pensa que tudo no TikTok tem de ser rápido e cheio de movimento, e sente medo de ser forçado a embarcar em um trem cheio de sinos, apitos e luzes”, brincou. “Tem sido muito legal descobrir que o conteúdo mais lento também tem valor, e que há muito espaço para quem quer parar por um minuto para contemplar alguma coisa.”

Aos 40 anos e contando com 11,7 mil seguidores, Pavan gosta de fazer parte de uma plataforma jovem, na qual “a maioria dos usuários está descobrindo o mundo e aberto ao que não conhece”. Embora tenha recebido alguns comentários negativos no TikTok, ela considera, como Mariana, que o espaço é mais positivo do que outros na internet. “Me parece um lugar ligeiramente mais carinhoso, ou ao menos meu algoritmo tem sido carinhoso comigo”, afirmou. “Meu pequeno pedacinho ali é muito agradável, muito fácil de lidar.”

Conquistando espaços

Despertar o interesse do público é uma etapa importante da criação de conteúdo nas redes sociais. Outra, é encontrar formas de viabilizar esse trabalho financeiramente. Há vários casos de TikTokers que, depois de viralizarem na plataforma, chamaram a atenção de marcas e estúdios de Hollywood – como Addison Rae, que despontou no aplicativo e assinou um contrato milionário com a Netflix.

No entanto, poucas criadoras têm tantos seguidores como os 87 milhões de Addison Rae, o que torna a viabilidade financeira de seus projetos mais complexa. Pavan já fez TikToks patrocinados (assim como Madelaine Turner e Christina Dobre) e foi convidada para trabalhos fora do aplicativo por quem viu e gostou de seu vídeos, enquanto Mariana tem uma campanha de financiamento recorrente, na qual oferece conteúdo exclusivo a apoiadores que contribuem mensalmente.

Criadoras como Mariana também têm encontrado oportunidades de levar seu trabalho para outros espaços de exibição. Um de seus vídeos, intitulado “Uma Contradição”, recebeu menção honrosa no Festival Brasileiro de Nanometragem, dedicado a filmes de até 45 segundos, e foi uma de cinco obras escolhidas para representar o país no Festival Internacional de Contis, na França.

@itschristinadobre Reply to @gmoney7_ We’re back! What is your ✨dream career✨ in the film industry? #filmtok #filmtiktok #womeninfilm #filmmakertips #filmmaking #filmindustry #filmcareer #directorofphotography #steadicam #filmset #cinematographer ♬ Harry Potter – The Intermezzo Orchestra

Aos poucos, o formato curtíssimo começa a sair dos festivais segmentados para encontrar outros públicos. Em 2018, o TikTok fechou uma parceria com a Film Independent, produtora do Festival de Cinema de Los Angeles, para oferecer o Real Short Award, um prêmio de US$ 10 mil para o melhor vídeo criado na plataforma (a vencedora, vale dizer, foi uma mulher: Ann Lupo). Em 2021, o Instituto de Cinema Britânico dedicou um painel às criadoras de conteúdo do TikTok na programação da mostra Woman With a Movie Camera. E até o Festival de Cannes, que um dia baniu as selfies no tapete vermelho, acolheu o aplicativo como seu parceiro oficial. Na edição deste ano, o TikTok vai veicular conteúdo exclusivo direto dos bastidores do tradicional evento francês e realizar o #TikTokShortFilm, um concurso mundial de curtas rodados na vertical e com duração de 30 segundos a três minutos. De acordo com a organização, um corpo de jurados liderado por “artista de renome” vai julgar os filmes inscritos e entregar três prêmios em cerimônia especial.

No Brasil, as duas últimas edições do Cabíria, festival dedicado a filmes dirigidos por mulheres, incluíram a Mostra Imaginários Possíveis, uma parceria com a plataforma Hysteria que reuniu obras com duração entre 30 e 180 segundos. Para as organizadoras do Cabíria, Marília Nogueira e Vânia Matos, esta foi uma forma de estimular a criação audiovisual e a produção de filmes no momento em que a pandemia e a falta de incentivos por parte do governo inviabilizava qualquer modelo tradicional de filmagem.

No total, as duas edições receberam mais de 200 inscrições, com 20 títulos selecionados em 2020 e outros dez em 2021. Em ambos os anos, a Mostra Imaginários Possíveis foi a mais vista do festival, acumulando mais de 23 mil visualizações. “É um sucesso que se deve muito à parceria com o Hysteria e ao formato de exibição em redes sociais, mas que denota também um interesse e adesão do público às narrativas curtas”, opinaram.

Na terceira edição, prevista para este ano, as organizadoras pretendem fortalecer a mostra como um espaço de formação de portfólio e experimentação criativa para cineastas mulheres, especialmente estreantes. “É uma forma interessante e acessível de elas divulgarem seus talentos, criatividade e poder de realização, de praticar seu ofício e receber retornos que permitam seu aprimoramento.”

Liberdade para experimentar

A possibilidade de experimentação oferecida pelas redes sociais é um dos aspectos mais valorizados pelas criadoras. Mariana afirma que postar seus vídeos no Instagram e no TikTok fez com que deixasse de questionar as próprias ideias e sentir a necessidade de ser aprovada pelos outros. Como muitas atrizes, ela também percebeu que passar para o outro lado da câmera é uma forma de assegurar papéis mais interessantes para si mesma. “Antes, para um trabalho acontecer eu dependia de alguém me convidar ou de alguém me aprovar num teste. Sentia uma certa impotência nesse mundo no qual o seu perfil às vezes é mais importante do que o seu potencial”, afirmou a atriz, que tem planos de realizar um curta-metragem.

@pbpbbpbppb ? #ThePowerOfTheDog #JaneCampion #KirstenDunst #Woof ♬ original sound – pavan

A autonomia oferecida pelos aplicativos é uma das razões pelas quais representam boas oportunidades especialmente para as mulheres. São elas, afinal, as que mais enfrentam obstáculos para realizar e exibir seus filmes em espaços tradicionais, bem como para atuar na crítica. “Nos veículos grandes e estabelecidos existe a ideia de se falar sobre a mulher no cinema, mas ainda é um pouco prescritivo, ainda se segue o modelo de sempre”, opinou Pavan. “As novas ferramentas dão a liberdade de você discutir cinema exatamente como quer.”

Ela oferece sua própria trajetória como exemplo. Fã de cinema desde criança, ela não achava que poderia fazer crítica do jeito que gosta de fazer, focando principalmente no que um determinado filme a fez sentir. “Grande parte da conversa sobre cinema é extremamente técnica, focada em rankings e listas, interessada em longas que arrecadam muito dinheiro nas bilheterias ou que são protagonizados por certas pessoas. E a minha versão de cinema é outra”, explicou. “Gosto de escrever sobre como sinto os filmes, e não achava que isso poderia ser relevante. No entanto, estou constantemente recebendo mensagens, especialmente de mulheres, dizendo que gostam dos meus vídeos e que não sabiam que podiam pensar sobre filmes dessa forma.”

TikToker com orgulho

Em que pese o crescimento e os números astronômicos do TikTok, é difícil dizer se filmes e críticas produzidos para o aplicativo receberão atenção e respeito genuíno de quem faz parte da indústria cinematográfica. Pavan, por exemplo, diz sentir pouco interesse entre quem escreve sobre cinema. “Para muita gente que trabalha com texto, [fazer crítica em] um minuto não parece suficiente. E produzir para o TikTok é algo que parece fácil, mas envolve criatividade. Não basta que uma publicação coloque sua marca ali: é preciso não ter medo de comentar sobre os filmes e se envolver com os memes. Para quem souber usar, acho que pode ser um ótimo espaço.”

@rosamarirosa Um Bem ♡ #nanometragem #tiktokbrasil #legenda ♬ som original – Mariana Rosa

Da mesma forma, será que um vídeo de poucos segundos será considerado tão filme quanto um curta ou longa-metragem no circuito de festivais? Para as criadoras do Cabíria, os microfilmes, assim como os demais formatos audiovisuais, têm suas próprias especificidades no que diz respeito às narrativas, arranjos de produção e estratégias de realização e contato com o público. “Comparar os formatos pode representar o risco de esvaziar suas dinâmicas, em vez de enaltercer suas capacidades criativas”, afirmaram.

Ao mesmo tempo, elas consideram importante valorizar a complexidade de se desenvolver uma ideia, tema ou história em formato tão curto. “Acreditamos que tanto as storytellers quanto a audiência vêm se experimentando de diferentes formas: por um lado, as invenções de construções narrativas; por outro, um frescor de experiências e novas expectativas acerca das obras.”

Mariana acredita que o preconceito que ela mesma tinha com vídeos curtos e filmados na vertical está diminuindo, mas ainda existe. “Sinto que o vídeo mais longo às vezes recebe um tratamento diferente de um vídeo do Reels ou do TikTok, que é visto como muito curto, como bobagem”, disse.

Proclamando-se “tiktoker com orgulho”, ela diz não se preocupar com a possibilidade de outros atores e atrizes a considerarem “menos artista” por sua presença nas redes sociais. “Tem sido mágico perceber como a minha expressão artística, que é algo tão pessoal, pode transformar alguém”, afirmou. “Fiz vídeos sobre temas como abuso, feminicídio e depressão e recebi muitas mensagens das pessoas dizendo que aquilo as impactou, as fez refletir. Essa é a maior força da arte. Sinto que o que tenho para falar, as pessoas estão ouvindo.”


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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