Everlane Moraes sobre “A Gente Acaba Aqui”: “A morte e a dor me fizeram criar”

Everlane Moraes homenageada Cabíria

Em 2011, a cineasta Everlane Moraes pegou a câmera para registrar o velório de seu tio, Wellington, em Aracaju (SE). Na época, ela ainda não tinha lançado o premiado documentário Caixa D’Água: Qui-Lombo É Esse, nem ganhado lugar de destaque no novo cinema nacional. A intenção era apenas filmar a família e cumprir uma promessa: “Meu tio tinha me pedido para fazer um filme sobre ele, e eu disse que faria”, contou a diretora, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Passou o tempo e nada. Quando ele morreu, pensei: ‘então vou filmar'”. 

Sem saber o que fazer com as imagens, Everlane deixou-as guardadas em seu arquivo e se dedicou a outros trabalhos. Agora, dez anos depois, recupera o material em A Gente Acaba Aqui, curta-metragem que pode ser visto online como parte do Convida, programa de incentivo artístico lançado pelo Instituto Moreira Salles em 2020. Em meio à pandemia do novo coronavírus (Covid-19), o projeto comissionou cerca de 170 artistas e coletivos para criarem novas obras – uma delas, e talvez a de maior impacto, foi República, de Grace Passô.

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O curta de Everlane é rodado em preto e branco e registra um velório bastante íntimo, realizado na casa do morto. O caixão divide espaço com os móveis, os parentes se despedem e se encontram e os sons de lágrimas e orações se confundem ao de um bebê chorando e ao das conversas casuais. Embora sejam de 2011, as imagens dialogam diretamente com o devastador contexto brasileiro ao lembrar que as mais de 528 mil vítimas de Covid eram pessoas, não números. Tal contexto foi um dos fatores que levou Everlane de volta a seu arquivo, mas não o único: também ela estava em luto pela morte da mãe, em dezembro de 2020.

“Voltei àquelas imagens e vi muita gente que agora está morta. Pessoas mortas que ali estavam vivas, olhando para um morto. Aquilo me tocou muito e falei: acho que é o momento”, disse a diretora. “Não estamos conseguindo ritualizar a morte, nos despedir da maneira devida, com todo o afeto que é cultural. As pessoas estão morrendo no hospital, estão sendo enterradas em qualquer lugar, números e mais números. Quando olhei para aquelas imagens vi tudo que queria para a minha mãe: os familiares, os amigos ao redor do corpo dela, o momento de luto que a gente não está conseguindo ter.”

Nascida na Bahia e criada no Sergipe, Everlane se formou primeiro em artes visuais e depois se especializou em direção de documentário na Escola Internacional de Cinema e Televisão de Cuba (EICTV), que potencializou seu interesse pelo cinema experimental. Depois de oito curtas, incluindo Aurora (2018) e Pattaki (2019), ela agora se dedica a oito projetos de longa-metragem em diferentes estágios de desenvolvimento, como O Navio e o Mar, Germano Black Society e O Segredo de Sikán. Leia a entrevista com a diretora:

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Em que contexto você rodou as imagens do velório do seu tio em 2011? Era uma filmagem de família ou você tinha um projeto em mente?

Fiz essa filmagem antes de rodar meu primeiro filme. Eu tinha uma “câmerazinha” e sempre fazia registros de família, o pessoal já estava meio acostumado com isso. Meu tio Wellington uma vez tinha me pedido para fazer um filme sobre ele, e eu disse que faria. Passou o tempo e nada. Quando ele morreu, pensei: “então vou filmar”. Tinha assistido ao filme do Glauber [Rocha] sobre o enterro de Di Cavalcanti [Di, de 1977] e sempre tive interesse por velórios, enterros, rituais. Venho de uma cultura de bairro, de comunidade, em que é muito importante esse momento, esse ritual familiar em que amigos e parentes vêm se despedir do corpo e dar conforto à família. Então filmei o velório do meu tio por isso, porque tinha prometido. Estava com minha câmera, entrei e comecei a filmar. Era um velório de família mesmo, então estava confortável, tranquila. Mas deixei as imagens lá, porque não sabia como lidar com elas. Pensava em ir atrás de imagens do meu tio em vida, para poder fazer um filme sobre ele que não fosse tão fúnebre. Mas fui fazer outras coisas, e ficou nessa.

E o que te fez voltar a essas imagens, a partir do convite do Instituto Moreira Salles?

Por um tempo não fazia sentido produzir um filme com aquelas imagens, porque já não tinha conexão com elas. Achava um pouco sensacionalista, não sabia o que fazer. Mas depois da morte da minha mãe, tudo fez sentido. Voltei àquelas imagens e vi muita gente que agora está morta. Pessoas mortas que ali estavam vivas, olhando para um morto. Aquilo me tocou muito e falei: acho que é o momento. Até pelo que a gente está vivendo agora, de não conseguir ter um luto real, nem a dimensão da importância do ritual do velório, de reunir familiares, de ter o morto em casa. Achei um bom momento para finalmente fazer essa homenagem para o meu tio.

A morte é um assunto tabu, sobre o qual evitamos pensar e falar. Ao mesmo tempo, no último ano convivemos muito com a morte e de forma quase banalizada. É como se tivéssemos nos acostumado à morte, mesmo sem saber lidar com ela. Como você vê as imagens do seu filme em relação a esse momento do Brasil? O que faz com que elas sejam atuais?

Primeiro, há meu interesse por temas universais. Busco a especificidade dentro da cultura afro-diaspórica, periférica e quilombola, mas gosto dos grandes temas da humanidade. A atemporalidade do preto e branco também fez com que as imagens se comportassem melhor para eu dar esse contexto atual. Não estamos conseguindo ritualizar a morte, nos despedir da maneira devida, com todo o afeto que é cultural. Vejo que esse tipo de enterro [em casa] é muito de comunidade mesmo – de negros inclusive, de pessoas pobres. É a cultura de quem não pode pagar um outro lugar. No caso do meu tio, era uma casa muito pobre, e isso para mim também era muito importante. Porque existia um afeto ali. Mesmo na pobreza, existia uma dignidade. A dignidade da morte, de velar o corpo, de se reunir ao redor do caixão, de brindar as pessoas com café, de preparar o espaço. O velório da minha mãe não foi dentro de casa, foi no OSAF [Organização Social de Assistência à Família]. Quando olhei para aquelas imagens vi tudo o que queria para a minha mãe. Os familiares, os amigos ao redor do corpo dela, o momento de luto que a gente não está conseguindo ter. Primeiro porque as pessoas estão morrendo no hospital, segundo porque estão sendo enterradas em qualquer lugar, de forma coletiva, números e mais números. Acho que tudo tem a ver com a sensação de impotência que estou sentindo. Outra referência muito boa que tive foi Nota sobre o Luto, da Chimamanda [Ngozi Adichie], que li logo após a morte da minha mãe. Ela também me ajudou a entender as angústias que estava sentindo, de não conseguir tocar minha mãe, de não velar o corpo e de ver que minha família, diferente de mim, já não tem essa conexão cultural com o velório. Eles aceitaram muito bem ter o corpo velado nesse lugar completamente inóspito, enquanto que para mim foi um choque.

Seu filme dá muito destaque aos elementos da vida cotidiana que estão ao redor da morte: as pessoas falando, o choro de um bebê, o fio de um equipamento, a geladeira atrás do caixão. Fale um pouco sobre estas escolhas de imagem e som que você fez.

Tem um pouco de metalinguagem nas questões formais e também uma medida de ocultamento, porque a gente nunca vê o morto. A gente só vê vida no filme, só vê os corpos vivos. O tempo todo há uma brincadeira de vida e morte. A criança, as pessoas olhando para o corpo, os diálogos banais ali diante do morto. É um monte de vida ao redor do corpo sem vida. Na época eu só queria registrar o velório mesmo: o quanto a gente fica disfarçando que a morte está ali, conversando sobre coisas que não têm relação nenhuma com o momento. O velório começa com muito barulho e aos poucos vai ficando silencioso, a gente vai entendendo que daqui a pouco vai ter de enterrar, daqui a pouco vai ter de rezar para ele fazer a passagem. Acho interessante esse processo progressivo de despedida. E inclusive o velório é um lugar de despedida e de encontro ao mesmo tempo. Porque também há o encontro de pessoas que não se viam há muito tempo e que não viam o morto havia muito tempo. 


“Foi muito difícil criar na pandemia. Não faltou trabalho, mas tive vários momentos de travar criativamente e de inclusive não fazer sentido a criação. Criar o quê? Pra quê? Mas não parei de criar porque a criação é minha fonte de renda e de vida. Tive de criar com inspiração, sem inspiração e até a partir da morte.”


O projeto Convida propôs que artistas criassem durante o período de quarentena, que no Brasil acabou sendo muito mais longa do que se esperava, e na verdade continua em vigor. Como tem sido esse período para você? Como está sendo criar nesse contexto?

Muito difícil. Não faltou trabalho, ainda bem, mas tive vários momentos de travar criativamente, e de inclusive não fazer sentido a criação. Criar o quê? Pra quê? Vou fazer um filme, mas e aí? As pessoas seguem morrendo, a política segue sendo colonial e escravista, a gente segue na precariedade, agora ainda mais na precariedade. Foi muito angustiante tudo isso, lidar com a telinha, não tocar as pessoas, ficar distante, querer ver a família e deixar para depois, esse adiamento de encontrar com eles. Na verdade o meu retorno de Cuba [após concluir o curso de cinema] foi muito difícil: cheguei em 2018, passei por um ano de notícias políticas muito difíceis, depois veio a Covid. Foi difícil a adaptação a esse Brasil que deixei de uma maneira e encontrei de outra. Chegar de Cuba e estar Bolsonaro [sendo eleito], eu não conseguia entender o que era isso. Chegar aqui e ver metade da minha família, que é negra e pobre, votando em Bolsonaro. Foi difícil e foi difícil criar. Mas não parei de criar porque a criação é minha fonte de renda e de vida. Tive que criar com inspiração, sem inspiração e até a partir da morte. A morte e a dor me fizeram criar esse filme. Saber que o filme teria importância nesse contexto me ajudou a manter essa energia vital e criativa, apesar de toda a tristeza. Acho que de alguma maneira as pessoas vão sentir e talvez fazer as pazes com a morte ou entender melhor esse momento, pensar sobre a morte, pensar sobre a vida. Talvez possam naturalizar a morte – não esse tipo de morte que a gente está vendo agora, mas naturalizar a morte e cuidar bem dos vivos. O que aprendi mesmo nesse período foi isso: cuidar bem dos vivos. E além de tudo, cumpri a promessa que fiz ao meu tio. A fama dele vai vir em morte, mas vai vir. Foi um bom momento de me livrar dessas imagens. Estava aprisionada a elas, foi uma libertação mesmo. Por isso digo no filme que as imagens nasceram em 2011 e morreram em 2021. Agora elas vivem de outra maneira.

Você se formou primeiro em artes visuais. O que encontrou no cinema, e especificamente no documentário, para entender que esta era a arte que queria explorar?

O cinema é uma arte do meu tempo, mais expansiva, mais tecnológica. Sou muito eclética e acho que essa é a plataforma que me deixa mais livre para criar a partir da interdisciplinaridade e do transversal. Consigo associar o cinema a qualquer “logia” e a qualquer linguagem. O cinema é muito jovem, tem menos de 200 anos. Embora a gente pense que tudo já foi feito, há muito espaço para experimentar. Isto me cativou muito: ser um lugar para experimentar. No caso do documentário, me apaixonei desde jovem, mas especialmente na Escola de Cuba. A ficção me atrapalha um pouco, no próprio método mesmo: utilizar atores, repetir take. Gosto da forma do documentário porque é mais aberta, mais expansiva. O documentário é muito livre, cabe tudo. Gosto disso porque gosto das pessoas, da realidade, do social, dos acasos, do imprevisível do mundo, de captar movimentos. Acho que o documentário dialoga com as pessoas e o mundo de uma maneira mais espontânea e propositiva. O que me atrapalha muito é o lugar marginal que o documentário tem no cinema nacional e latino-americano. Por causa disso, comecei uma prática maior no cinema híbrido, que dialoga com várias linguagens. A escola documental norte-americana é muito jornalística, informativa, comunicacional, e isso deixa o documentário em um lugar muito rígido e muito pequeno. Quis ir para uma área mais poética e performática.


“Desde muito pequena tive não apenas a referência da arte mundial, dos livros, que na verdade é a arte branca, mas também tive dentro de casa um artista negro marginal, meu pai. Via ele sentado em frente à tela em branco e de repente a tela ficava cheia de imagens. Me apaixonei por imagens já ali.”


Você disse que a possibilidade de experimentar é um atrativo do cinema, e experimentar pressupõe estar aberta ao novo, ao desconhecido e ao erro. Este direito de experimentar e de errar é uma coisa que muitas mulheres sentem não ter, pois é preciso estar sempre pronta, preparada, provando que sabe. Isso pode levar a um certo medo de arriscar e até a uma sensação de responsabilidade com as outras mulheres. Me lembro, por exemplo, de a diretora Niki Caro dizer que se preocupava com o a possibilidade de Mulan não fazer sucesso e isso fechar portas para outras cineastas. Às vezes o diálogo sobre gênero no cinema cai um pouco nisso – é como se você não fosse mais só a Everlane, e sim todas as diretoras negras do Brasil e todas as mulheres negras do Brasil. Queria saber como foi sua relação com tudo isso: a experimentação se deu naturalmente ou foi algo que você teve que se permitir fazer?

Diferentemente de outras mulheres, negras, jovens, brasileiras, vim de uma família de artistas. Artistas frustrados e fodidos, né? Meu pai é artista plástico desde 1968 e vi a luta desse homem negro para fazer obras e exposições. Desde muito pequena tive não apenas a referência da arte mundial, dos livros, que na verdade é a arte branca, mas também tive dentro de casa um artista negro marginal, meu pai. Via ele sentado em frente à tela em branco e de repente a tela ficava cheia de imagens. Me apaixonei por imagens já ali. E sempre tive esse incentivo, essa referência. Sempre convivi com artistas amigos do meu pai, pessoas com um visual estranho, uma mente estranha, diferente. Eu também sempre fui um pouco estranha, meu pai conta que eu fazia análises e perguntas muito estranhas, pintava imagens muito estranhas. Então trabalhar com arte foi algo muito natural e confortável e sempre foi um lugar de experimentação. Sempre estive muito livre, nunca me prendi a nada.

E aí em Cuba encontrei uma escola muito aberta, formalista, que incentiva muito os temas sociais e na qual a sua única preocupação [como aluna] é fazer filmes. Fui muito incentivada a experimentar, principalmente na cátedra do documentário, porque ali nunca existiu diferenciação ou crise ética entre documentário e ficção, verdade e mentira – a gente fazia filmes. Tive liberdade total e em três anos experimentei pra caramba, tudo que queria, porque estava no contexto da escola, e escola é para errar e para experimentar. Consegui encontrar a Everlane porque a escola me incentivava a ser eu mesma: Everlane, negra, baiana, de Cachoeira, do Brasil, militante. Fui jogando para fora tudo o que podia, e tudo era lindo, tudo era incentivado. Você me perguntando isso agora eu até faço a análise de que tive muita sorte. Tive muita sorte e muito incentivo, muito privilégio. Um privilégio negro de ter uma família, de ter um pai tão sensível que entendia que sem arte, nem bicho a gente é. E aí quando fiz o Caixa D’água, que tem muita experimentação e ganhou o mundo, pensei: “estou no lugar certo”. Parece que tudo fez sentido. Todo o meu caminho fez sentido nesse caldeirão onde misturo tudo, que é o que pretendo com a minha arte. Acho que tudo funciona e tudo pode ser aproveitado.

Você tem muitos projetos em andamento e pelo menos três deles foram selecionados para bolsas e laboratórios recentemente. Como faz para trabalhar em tantas frentes?

Sou cineasta negra independente, e não cineasta de herança, como é o cineasta branco brasileiro que herda a indústria. A gente não consegue ser só artista: se eu não brigar politicamente, junto com os meus, não consigo fazer o que quero. Então antes de mais nada sou uma cidadã que busca brigar politicamente para ter um espaço de subjetividade. Depois tem o fato de que cada projeto leva de dois a cinco anos. Neste momento estou trabalhando simultaneamente em oito longas, cada um em uma etapa. Sempre me pergunto como consigo fazer isso, mas enfim, consigo. Sou acelerada, disciplinada. Cada projeto é muito importante para mim, então busco energia para trabalhar neles, e também me mantenho independente para conseguir ter regularidade nesse trabalho. Mas é difícil. Tem dias que o desgaste mental e físico é sinistro, tem dias que choro compulsivamente, que não dou conta, que bloqueio. Aí é o afeto né? Os produtores e as pessoas que trabalham comigo me incentivam, me levantam. Sem afeto não teria condições nenhuma.


“Cada mulher negra fazendo cinema é diferente da outra, tem questões diferentes na hora de lidar com o mundo e com o racismo. E a questão da causa é complicada porque a gente faz cinema. Cinema negro é cinema. Digo que ele é negro porque preciso dizer que ele é negro, porque quero dizer que ele é negro. Mas é cinema.”


Que conselho você daria para as mulheres que querem trabalhar no cinema?

Primeiro, se despir da vaidade: parece muito lindo esse universo, essa visibilidade, mas a gente é trabalhador como qualquer outro. Depois, não perder a ética pessoal e profissional e entender que as pessoas sempre são mais importantes que o filme. Ter disciplina de horário, de entrega, de compromisso. Saber receber não, porque os “nãos” serão inúmeros. Saber dizer “não” também. Buscar ser você mesma, ser verdadeira, porque a gente quer ver você no seu filme. Não parar nunca, estar sempre se ressignificando. Entender quem você é, para fugir da mediocridade e da superficialidade. Buscar ser e se expressar enquanto ser humano e deixar as pautas pesarem menos na hora de criar, porque elas já estão. Já somos mulheres, já somos quem somos e tudo está aí. Sempre serei uma mulher negra, sul-americana, latino-americana, baiana, quilombola. As pautas são inerentes à minha existência, fazem parte do meu ser. Então deixar a pauta sair um pouco das nossas costas, porque a gente também precisa encontrar a gente, o lugar individual, da autoria. Ao mesmo tempo, tem de estar nas redes de mulheres do cinema, tem de brigar pelos projetos de leis, pelos fundos, pelos outros cineastas. Esse é o espaço mais importante: o da disputa política e simbólica. Eu, que sou do cinema negro, sei que antes de a polícia matar a gente nas ruas, a gente é morto simbolicamente, principalmente nos filmes. O cinema é um lugar de opressão, colonial, violento, e a gente precisa brigar para desfazer essa estrutura e conseguir um espaço mais digno. Busco dignidade no cinema e tenho muito medo de me arrepender dos meus filmes. Então estou atenta aos temas, à minha trajetória, ao modo como trato os profissionais com os quais trabalho, à etica. Acho que meu conselho é esse: ética, estética e política – sempre, e andando juntos.

Você já se arrependeu de algum dos filmes que fez?

Não, filho nascido é filho no mundo. Faria várias coisas diferentes, mas gosto de todos. E se não me emocionar com meus filmes, como vou querer que os outros se emocionem? Quero me manter sempre preocupada com as pessoas, os temas e a disputa política, entendendo que estou em um lugar de privilégio no qual muitos não estão. Você falou sobre a coisa da chance, de que é péssimo ser uma negra representando um monte de negra. É terrível, a representatividade é terrível. Temos vários cinemas negros e vários cinemas negras inclusive. Cada mulher negra fazendo cinema é diferente da outra, tem questões diferentes na hora de lidar com o mundo e com o racismo. Cada uma vem de um lugar e de um contexto. É horrível quando você representa. É muito triste. Às vezes acho que ser uma das poucas cineastas negras não é motivo de orgulho e sim de vergonha. Na verdade dá muita vergonha estar só quando há tantas outras mulheres que também poderiam estar fazendo cinema. Esta questão da causa é muito complicada porque a gente faz cinema. Cinema negro é cinema. Digo que ele é negro porque preciso dizer que ele é negro, porque quero dizer que ele é negro. Mas é cinema. E às vezes insistem em colocar a gente em caixinhas, querem que a gente fale só de determinadas coisas, insistem em perguntar sobre determinadas coisas. Às vezes quero falar só de filme, de linguagem, de cinema, mas insistem que eu fale sobre o lugar do cinema negro. E gosto de falar disso também, mas a gente está fazendo filme como qualquer filme. Infelizmente a causa está com a gente por quê? Porque eu mesma não tive referências de cinema negro.

Quando você começou a ter essas referências?

A primeira vez que eu vi um cineasta brasileiro negro na minha frente foi o André Novais, durante o [festival] Visões Periféricas, no Rio de Janeiro. Mas foi principalmente no Encontro de Cinema Zózimo Bulbul [festival carioca dedicado ao cinema negro], que aconteceu logo depois. Foi a primeira vez que vi cineastas negros da África e do Brasil. Conheci a Viviane Ferreira, a Larissa Fulana de Tal e disse: “não estou só!”. Claro, sabia que existia o [diretor senegalês] Ousmane Sembène, vinha do movimento negro, lia coisas, via coisas, tenho pai negro artista, tenho irmão preto filósofo. Tudo foi se construindo de maneira natural, a partir de outras áreas. Mas o Zózimo me trouxe um direcionamento mais político, de buscar entender que existe um cinema negro e que ele não vem de agora. Em Cuba isso cavou ainda mais, porque conheci a [cineasta cubana] Sara Gómez, que para mim é uma das maiores cineastas que já existiu. Acho que foram marcos: Zózimo foi um marco, a Apan [Associação de Profissionais do Audiovisual Negro] foi um marco, ir para Cuba foi um marco, fazer um filme sobre meu quilombo foi um marco, conhecer cineastas africanos foi um marco. Fui incrementando esse entendimento, mas estar com outras cineastas negras, em rede com elas, não tem preço. Você não se sente só, você vê o filme da outra. Por isso a Apan é revolucionária pra gente.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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