De Bigelow a Zhao: reflexões sobre a segunda vitória de uma diretora no Oscar

Onze anos atrás, em 7 de março de 2010, Barbra Streisand subiu ao palco do Oscar para entregar o prêmio de melhor direção. Segundos antes de anunciar a vitória de Kathryn Bigelow, ela fugiu ao protocolo e resumiu em um breve comentário a importância histórica do que aconteceria em seguida: “a hora chegou”. 

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Tanto tempo se passou sem que outra mulher se juntasse a Bigelow que quando isso finalmente aconteceu, no último domingo (25), foi como se as palavras de Streisand ecoassem novamente. Chegou a hora, enfim, de uma segunda diretora receber a estatueta – desta vez a chinesa Chloé Zhao, a primeira mulher não branca a vencer na categoria. Seu filme, Nomadland, também se tornou o segundo dirigido por uma mulher a levar o principal prêmio do Oscar, depois do longa de Bigelow, Guerra ao Terror.

É uma pena, para não dizer um desrespeito, que os produtores da cerimônia tenham tirado parte da força da vitória de Nomadland ao optar pela desastrosa ideia de entregar o troféu de melhor filme antes dos prêmios de atriz e ator. Ao invés de um final empolgado como o do ano passado, marcado pelo triunfo de Parasita, o Oscar 2021 se encerrou num anticlímax inacreditável: a clara expectativa dos produtores por um prêmio póstumo a Chadwick Boseman foi frustrada pela vitória de Anthony Hopkins, que não estava presente.

Teria sido muito melhor (tanto para o público quanto para o Oscar) encerrar a transmissão com a imagem de Zhao e da equipe de Nomadland no palco do que com Joaquin Phoenix dizendo que a Academia aceitaria a estatueta em nome de Hopkins. Ainda assim, há inegável impacto simbólico na vitória do filme, e sobretudo na da diretora, principalmente em meio ao aumento dos crimes de ódio contra asiáticos nos Estados Unidos e em outras partes do mundo. Em seu discurso de agradecimento, Zhao não abordou diretamente tal contexto, mas dialogou com ele ao dedicar o prêmio “às pessoas que têm fé e coragem de se agarrar à bondade delas e dos outros, mesmo quando é muito difícil”. “Vocês me inspiram a seguir em frente”, disse ela.

Bong Joon-Ho e Sharon Choi anunciam a vitória de Chloé Zhao – Foto: Jaehyuk Lee / A.M.P.A.S.

A vitória tem grande força simbólica, também, porque o debate sobre desigualdade de gênero e raça no cinema está muito mais avançado hoje do que onze anos atrás. A conquista de Bigelow no Oscar foi um de vários acontecimentos que ajudaram a movimentar a indústria e o público e a fazer com que a pauta ganhasse a urgência que passou a ter, principalmente nos últimos seis anos. Zhao certamente deu e dará novo impulso a este movimento ocupando espaços importantes na mídia e no imaginário coletivo, e levando a novas reflexões sobre a necessidade de pressão contínua. Foi esta pressão que levou a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas – responsável pela entrega do Oscar – a criar mecanismos para ser mais inclusiva no que diz respeito a seus membros votantes. Em apenas cinco anos, de 2015 a 2020, o número de mulheres, pessoas não brancas e estrangeiros entre os integrantes da organização mais do que dobrou, e a partir de 2024 só filmes que atenderem a “critérios de inclusão” poderão disputar o Oscar principal.

Nenhuma dessas mudanças é suficiente para de fato resolver as desigualdades do cinema hollywoodiano, já que o Oscar é parte de uma engrenagem muito maior. Se a tarefa fosse apenas fazer com que os nove mil integrantes da Academia atentassem para o talento de mulheres e minorias, seria fácil. Mais difícil é derrubar as inúmeras barreiras frequentemente impostas a elas em todas as etapas da produção, distribuição e exibição de um filme. 

Dito isso, o Oscar 2021 foi o que premiou mais mulheres em toda a história: 17 – quatro a mais do que no ano passado e duas a mais do que na edição de 2019, que detinha o recorde até então. Também houve um pequeno aumento no número de filmes dirigidos por mulheres que foram premiados: no ano passado foram dois, ambos documentários; agora foram três, sendo dois de ficção. Além disso, Zhao não foi a única premiada a fazer história ou quebrar longos jejuns. Jamika Wilson e Mia Neal tornaram-se as primeiras mulheres negras a vencer na categoria de cabelo e maquiagem; Youn Yuh-Jung, a primeira atriz sul-coreana e segunda atriz asiática a ganhar um Oscar; Frances McDormand, a primeira mulher a ser reconhecida como atriz e como produtora pelo mesmo filme; e Emerald Fennell, a primeira mulher a levar um troféu de roteiro desde 2008.

Listando assim, pode ser tentador proclamar que a mudança já chegou. Mas o próprio Oscar nos ensina que reconhecimentos pontuais nem sempre são sinais de um processo de avanço rápido e contínuo. O clima de “agora tudo vai ser diferente” que acompanha a vitória de Zhao é parecido ao que se seguiu à de Bigelow em 2010 ou à de Halle Berry em 2002, quando se tornou a primeira mulher negra a vencer como melhor atriz. No entanto, até agora ninguém se juntou a ela, e o Oscar 2021 foi apenas o primeiro desde 1973 em que mais de uma atriz negra concorreu na categoria. Ambas as vitórias inspiraram muita gente e contribuíram para que ações fossem tomadas, mas não se traduziram imediatamente em prêmios e oportunidades para outras artistas.

Kathryn Bigelow recebe o Oscar de Barbra Streisand em 2010; Chloé Zhao aceita o prêmio em 2021 – Fotos: ABC

Há que se considerar, ainda, que a edição deste ano do Oscar é sem precedentes sob todos os aspectos, dado o devastador impacto da pandemia na indústria cinematográfica. Com cinemas fechados em grande parte do mundo durante quase todo o ano passado, muitas produções foram adiadas ou estrearam direto nas plataformas digitais. Isso levou o Oscar a aceitar, excepcionalmente, a inscrição de filmes que não passaram pelas salas, e também tirou alguns dos maiores lançamentos da jogada. Para muitos estúdios, pareceu melhor esperar a normalização das atividades e a próxima temporada de prêmios.

Não há como prever o que acontecerá quando os grandes orçamentos voltarem, ainda que tanto Chloé Zhao quanto Kathryn Bigelow tenham mostrado que há como triunfar no Oscar mesmo tendo recursos muito mais escassos do que os demais competidores. É sintomático, porém, que ambas as diretoras reconhecidas pelo Oscar tenham trabalhado com orçamentos baixíssimos para os padrões de Hollywood (US$ 5 milhões no caso de Nomadland, US$ 15 milhões no caso de Guerra ao Terror). Igualdade de oportunidades passa por igualdade de acesso a recursos financeiros, e embora Zhao pareça estar conseguindo este acesso (seu próximo projeto, Os Eternos, custou US$ 200 milhões), estudos mostram que ele ainda é profundamente desigual mesmo nas cinematografias mais igualitárias, como a sueca, por exemplo.

Em outras palavras, é cedo para falar em mudança estrutural ou em direitos conquistados, mas não para comemorar o fato de que o Oscar foi entregue a uma cineasta talentosa, que fez um trabalho de direção impecável em um dos melhores filmes de 2020. O valor individual da vitória talvez pareça pequeno diante do potencial valor coletivo, mas também aí pode se falar em igualdade – em uma artista poder ter seu trabalho celebrado independentemente do que isso possa significar a todas as outras artistas e a todas as outras mulheres. Cineastas homens (brancos) são vistos como indivíduos. Cineastas mulheres também devem ser.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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