
A diretora Rachel Daisy Ellis faz sua estreia no longa-metragem com “Eros”, documentário que já está em cartaz nos cinemas brasileiros. Para acessar a intimidade vivenciada nos motéis brasileiros, a cineasta convidou frequentadores a filmarem a si mesmos durante uma noite e a compartilharem as imagens, que foram usadas pelo filme. No depoimento abaixo, publicado com exclusividade pelo Mulher no Cinema, Rachel Daisy Ellis fala sobre o processo de realização:
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Escrevo este texto no momento do lançamento de Eros nas salas de cinema do Brasil, em pleno Dia dos Namorados, data em que os motéis lotam com casais em busca de um lugar especial ou, pelo menos, de um espaço diferente para curtir juntos. As filas de carros esperando horas nas entradas quebram o estereótipo de este ser um lugar destinado a infidelidades, sexo pago e/ou encontros eventuais, que garante o anonimato total dos seus frequentadores. Esta talvez seja a noite do ano quando o tabu do motel fica para trás e se vê o padrão de consumo e o prazer como o principal objetivo do estabelecimento.
Quando cheguei no Brasil, 21 anos atrás, fui apresentada aos motéis através de um breve encontro com um homem que queria “me levar a algum lugar especial”. Passamos algumas horas e fiquei com a impressão de que tinha acabado de conhecer um conceito de entretenimento adulto muito genial: um playground que permite um mergulho na intimidade, sem se preocupar com as implicações que se pode ter ao levar alguém para casa. Um lugar de performance, de entrega, de possibilidades, de tirar e colocar máscaras. Um lugar para viver fantasias e enfrentar medos, para ser um/a outro/a ou, simplesmente, si mesmo.
Fiquei intrigada ao descobrir como era comum as pessoas conduzirem relações sexuais regularmente em motéis. Aprendi que eles faziam parte do cotidiano das cidades brasileiras. Mas, apesar de serem tão integrados ao cotidiano, também eram razão para tabus. A onipresença na paisagem urbana, com sua arquitetura única, imperiosa e chamativa, mas que simultaneamente ocultava a identidade de seus hóspedes me gerava muita curiosidade. Queria entender como o motel, que surgiu como um local seguro para pessoas passarem algumas horas íntimas em plena ditadura, se transformou na maior instituição de sexo do Brasil.

Comecei a pensar qual seria o impacto, individual e coletivo, dos 100 milhões de estadias por ano na vida sexual e romântica das pessoas. Como um espaço que delimita que um prazer especial ou diferenciado só pode acontecer fora de casa, fora do lugar de convivência cotidiano, influencia a maneira com que nos relacionamos e a manutenção de um status quo que não enxerga o prazer sexual como algo essencial para o bem-estar humano, mas como um privilégio.
Ao mesmo tempo, nos últimos anos também comecei a questionar os limites do amor romântico, da fidelidade e das relações monogâmicas e normativas. Onde termina o afeto e começa a transgressão sexual? Será que espaços heterotópicos como os motéis perpetuam esta suposta dicotomia ou proporcionam um espaço onde tabus e fronteiras podem ser ultrapassados e redefinidos? A intimidade normativa realmente existe ou é uma invenção para controlar e ordenar? Queria explorar todas estas questões através de pessoas frequentadores de motel. Foi, então, que comecei uma grande pesquisa.
Autorregistro com linguagem
Embora não me faltassem questões, Eros nunca teve a pretensão de dar conta de entender por completo uma instituição tão grandiosa como o motel, nem de representar todas as maneiras de viver a nossa sexualidade. Aqui, há um recorte que surgiu de uma diretora, de sua pesquisa e de um dispositivo específico.
Escolhi convidar frequentadores de motel para fazer um autorregistro durante uma única noite em uma das milhares de suítes espalhadas pelo país. Esta proposta me parecia a única maneira de conseguir acessar a intimidade vivida entre as quatro paredes do motel, livre de qualquer interferência externa. Por isso, sequer ofereci câmeras ou gravadores de som. A minha participação foi limitada ao antes e ao depois das gravações e, mesmo assim, estabeleci poucas regras: filmar na horizontal e abordar temas relevantes das suas vidas que já tínhamos falado em conversas prévias.

O resultado é Eros, uma investigação da construção dos nossos afetos e das nossas intimidades através das conversas e dos pequenos gestos que acontecem no ritual do prazer. É, então, que se nota como o sexo em si é resultado daquilo, como bem escreve o autor mexicano Octavio Paz. O erotismo existe no ritual, e uma noite em motel segue um ritual do sexo, em que a própria suíte vira palco para os corpos presentes performarem.
“O erotismo não é mera sexualidade animal: é cerimônia, representação, sexualidade transformada: metáfora.
O erotismo é invenção, variação, incessante; o sexo é sempre o mesmo.
O erotismo é exclusivamente humano.”
Octavio Paz.
Uma experiência individual e coletiva
Depois de exibir Eros pela primeira vez e observar as impressões dos espectadores, entendi que tinha feito um filme que subvertia completamente o entendimento coletivo de motel. Porque embora pensemos nele como um espaço heteronormativo, se tirarmos a primeira camada de projeção midiática e de construção social mais óbvia, encontramos um lugar que funciona como refúgio. Um espaço onde podemos ver e reconhecer a imensa diversidade sexual que existe não apenas no Brasil, mas também no mundo.
Mesmo hoje o documentário tem me trazido muitas reflexões e surpresas. Porque, veja, é um filme sobre o desejo que foi feito a partir de um enorme desejo de usar um dispositivo fílmico para revelar algo extremamente íntimo sobre todos nós. Fazer isso enquanto realizadora mulher foi muito prazeroso. Aliás, ver o protagonismo feminino no filme e os corpos reais pulsando desejo e tesão foi uma imensa honra. Espero que o filme sirva como exemplo de cinema que surpreende, que não tem medo de provocar e lançar perguntas – perguntas estas tão íntimas quanto suas respostas, mas que ainda assim reverberam no coletivo.
O processo de fazer este documentário foi muito intenso, gostoso e revelador. Imaginei que duraria seis meses no máximo e, no final, foram quase 3 anos. Sou imensamente grata às pessoas que participaram desse filme e entregaram seus corpos, suas histórias e suas intimidades de forma tão generosa.
Eros faz parte de um trabalho mais amplo autoral meu, que explora a influência de instituições – especialmente as heterotópicas – nas relações interpessoais e como a autorrepresentação é uma ferramenta de realização incrível para acessar camadas mais íntimas nas relações humanas. Curiosamente, enquanto escrevo, percebo também que tenho forte desejo de investigar o erotismo, foco de meu próximo projeto também.
Rachel Daisy Ellis é uma cineasta britânico-brasileira que está radicada em Recife desde 2004. Mestre em Política Social e Participação, atualmente faz pós-graduação em Artes Visuais: Fotografia e Pós-Cinema na Universidade NOVA de Lisboa. Produziu cinco longas e um curta-metragem do diretor Gabriel Mascaro, com quem fundou a produtora Desvia em 2010, e coproduziu filmes como “Vermelho Sol” (2018) de Benjamin Naishtat, e “A Noite do Fogo” (2021), de Tatiana Huezo. Sua estreia na direção foi com o curta de documentário “Mini Miss” (2018). “Eros” é seu primeiro longa-metragem.