Antoneta Kastrati: “Cinema é essencial para encararmos trauma coletivo”

A diretora e roteirista Antoneta Kastrati era adolescente quando, em 1999, perdeu sua mãe e uma de suas irmãs durante a Guerra do Kosovo. O luto e o trauma deixado por este trágico passado – que é dela, mas também de seu país – estão fortemente presentes em Zana, seu primeiro longa-metragem de ficção, que desde maio pode ser visto na plataforma de streaming brasileira Supo Mungam Plus. 

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Exibido no Festival de Toronto e candidato do Kosovo ao Oscar de filme internacional, Zana explora a sociedade kosovar do pós-guerra, algo que a cineasta já fizera em seu trabalho documental, incluindo os curtas Seeking Magic (2009) e She Comes in Spring (2013). “A guerra despedaçou o mundo que conhecia e expôs o lado obscuro da vida e da nossa existência. Por outro lado, expandiu minha compreensão e minha consciência”, afirmou Kastrati, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Senti a necessidade de questionar e de falar sobre a experiência humana de forma mais profunda e significativa, e o cinema me deu a possibilidade de fazer isso.”

Zana se passa cerca de dez anos após a Guerra do Kosovo, conflito travado entre o grupo armado albanês conhecido como Exército de Libertação de Kosovo (ou KLA) e as forças sérvias comandadas por Slobodan Milosevic (1941-2006). Inserido no contexto das guerras da Iugoslávia e da tensão entre sérvios e albaneses, o confronto contou com ataques aéreos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental), que apoiou o KLA em uma controversa ação realizada fora de seu território e sem a autorização da Organização das Nações Unidas (ONU). A guerra se encerrou com a retirada das tropas iugoslavas e deixou mais de 13,5 mil mortos ou desaparecidos, a maioria albaneses.

Cena do filme “Zana”, de Antoneta Kastrati

Se os livros de história muitas vezes se referem às vítimas de guerra como números, Zana foca em pessoas, especificamente em Lume, interpretada pela ótima Adriana Matoshi. Casada e sem filhos, ela é uma mulher fortemente pressionada a engravidar, tanto pelo marido e pela sogra quanto pela comunidade do vilarejo em que mora. O médico afirma que não há nada que fisicamente a impeça de ter filhos e sugere terapia. A sogra responde que não há loucos na família e prefere recorrer a místicos para curar Lume não apenas da infertilidade como também dos pesadelos e visões que a assombram desde a guerra.

Ao abordar a brutalidade do conflito armado e o trauma coletivo deixado por ele, Kastrati também aponta para questões de gênero. A partir da história de Lume, o filme reflete sobre como a opressão e a falta de liberdade acompanham as mulheres mesmo em tempos de paz. “Não vejo a violência que está dentro de casa como algo separado da violência da guerra”, resume a diretora.

Formada em jornalismo no Kosovo, Kastrati estudou direção em um curso do American Film Institute voltado a mulheres, e hoje mora e trabalha em Los Angeles. Uma carreira internacional, mas sempre ligada a seu país natal, está nos planos da cineasta. “Me vejo fazendo filmes em inglês nos Estados Unidos, mas também quero voltar ao Kosovo, onde há muitas histórias que ainda precisam ser contadas”.

Leia as respostas de Antoneta Kastrati às perguntas enviadas por e-mail pelo Mulher no Cinema:

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Li entrevistas nas quais você disse que perder sua mãe e sua irmã durante a guerra foi algo determinante para que se tornasse cineasta. De que forma essa perda a aproximou do cinema?

Viver a experiência da guerra e sofrer uma perda violenta pode ter efeito devastador: você perde a esperança e se torna cética. No meu caso, a guerra despedaçou completamente o mundo que eu conhecia e expôs o lado obscuro da vida e da nossa existência. Por outro lado, também expandiu minha compreensão e minha consciência, o que fez com que se tornasse mais difícil ficar parada, sem agir. O que aconteceu me deixou com a necessidade de questionar e de falar sobre a experiência humana de forma muito mais profunda e significativa do que antes. O cinema me deu a possibilidade de fazer isso.

Zana é um filme bastante pessoal e, também, o seu primeiro longa-metragem de ficção. Por que quis contar essa história e por que escolheu a ficção desta vez?

Queria fazer este filme há muito tempo, mas estava me dedicando ao documentário e não me sentia pronta para mergulhar na minha própria história. Era cedo demais, tudo estava perto demais. Até que comecei a me envolver com a ficção. Meu primeiro projeto ficcional foi Lullaby, um curta de quatro minutos e sem diálogos, que dediquei à minha irmã Luljeta, morta na guerra. Senti que a ficção me deu liberdade para explorar as questões que tinha sem ter de me colocar em frente à câmera. E de tudo que vivi como sobrevivente, o que mais me perturbou foi perceber que a guerra torna as mães, e também os pais, incapazes de proteger seus filhos. Quando me tornei mãe, este fato se tornou muito real para mim, assim como o medo. Pensei em minha mãe, em outras mulheres que viveram a Guerra do Kosovo, e em mulheres ao redor do mundo que passaram por experiências similares. Queria que Zana criasse um espaço para este luto se articular e existir.

Cena do filme “Zana”, de Antoneta Kastrati

O filme é um drama com elementos de suspense e horror. Por que optou por combinar gêneros?

Quis costurar elementos de suspense/mistério e horror para capturar os sentimentos e emoções da protagonista, e para retratar melhor seu universo interior e as camadas de experiência e percepção. O horror é parte integral da história que estava tentando contar: é a brutalidade do que acontece com os corpos na guerra. Não é que estivesse tentando colocar horror no meu filme, é que estava vindo de um lugar de horror real que era meu mesmo – os meus próprios pesadelos e terrores, que tenho desde a guerra. O aspecto físico desse tipo de violência é algo assustador e muito difícil de processar. Por isso, para mim também era essencial [que estivesse no filme]. Além disso, os rituais de bruxaria e exorcismo têm raízes profundas nas tradições culturais [do Kosovo] e em Zana são eles que apresentam a dimensão social. Era importante entender com clareza qual era o tom do filme, que seria ancorado no humor da protagonista e deveria permanecer assim durante toda a história.


“O horror é parte integral da história que estava tentando contar: é a brutalidade do que acontece com os corpos na guerra. Não é que estivesse tentando colocar horror no meu filme, é que estava vindo de um lugar de horror real que era meu mesmo – os meus próprios pesadelos e terrores, que tenho desde a guerra.”


Seu filme fala sobre luto, violência e trauma, mas contextualiza estes temas em uma sociedade patriarcal, abordando a maternidade e a falta de liberdade das mulheres mesmo depois da guerra, e inclusive no que diz respeito a seus corpos. Por que quis trabalhar questões de gênero?

Porque não vivemos o luto em um vácuo: as normas e expectativas da sociedade continuam imprisionando as mulheres e curar as feridas se torna algo ainda mais difícil. O Kosovo é uma sociedade patriarcal e tradicional. Embora tenha havido evolução desde que a guerra acabou, para mulheres da geração da Lume, que se casaram antes do conflito, foi muito mais difícil conseguir mudanças drásticas. Elas já estavam presas a casamentos e ambientes difíceis de serem alterados, e não há mecanismos sociais que ofereçam suporte real e significativo. Para mim, era importante falar sobre as limitações com as quais elas têm de lidar e sobre como as escolhas feitas em nome delas não são realmente delas. Queria falar especificamente sobre as expectativas da maternidade, e sobre como o valor das mulheres é medido a partir da fertilidade e da capacidade de ter filhos. Queria lançar luz sobre esta conversa e dar à protagonista uma chance de se rebelar à sua própria maneira. Em resumo, não vejo a opressão e a brutalidade que está dentro de casa como algo separado da violência e da brutalidade da guerra.

Cena do filme “Zana”, de Antoneta Kastrati

Você retrata uma comunidade que repudia a terapia ao mesmo tempo em que abraça a bruxaria e os curandeiros. Questões relacionadas à saúde mental são tabu no Kosovo?

Há um estigma que acompanha a psiquiatria. Kosovo é uma sociedade moderna e está progredindo rapidamente, mas ainda tem um pé muito fortemente enraizado no misticismo. Uma grande porção da população acredita em feitiços e bruxarias, algo que passou a ser comercializado depois da guerra. Se alguém está tendo qualquer tipo de problema psicológico, mental ou até físico, é enviado a curandeiros mágicos. E acaba indo, por desespero. E é claro que são sempre as mulheres. Fiz um documentário sobre isso em 2009, chamado Seeking Magic. É um tema que considero, ao mesmo tempo, perturbador e fascinante. Perturbador porque oferece certas respostas sem fazer qualquer questionamento sobre a sociedade e sobre nossa própria participação em tudo isso. E, também, porque foi e continua sendo um mecanismo para vilanizar e silenciar as mulheres. Por outro lado, quando criança era intrigante ouvir as histórias. E como estamos lidando com pesadelos e terrores noturnos, não é difícil interpretá-los por essa lente. Meu principal interesse era dar à protagonista uma saída, a possibilidade de, talvez, começar a pensar que o problema estava sendo causado por forças externas. Me sinto atraída pelo que é misterioso e surreal, e isso se reflete nos meus filmes.


“Queria falar sobre as expectativas da maternidade, e sobre como o valor das mulheres é medido a partir da fertilidade e da capacidade de ter filhos. Queria lançar luz sobre esta conversa e dar à protagonista uma chance de se rebelar à sua própria maneira. Não vejo a opressão e a brutalidade que está dentro de casa como algo separado da violência e da brutalidade da guerra.”


Como escolheu Adriana Matoshi para o papel principal e como foi sua colaboração com ela?

Conhecia Adriana porque ela atuou em muitos filmes recentes que fizeram sucesso no Kosovo. Sua presença na tela sempre me atraiu não só pelo modo sutil e verdadeiro de atuar, mas também por uma espécie de mistério que ela tem. Adriana tinha a combinação perfeita de fragilidade e rebeldia que precisava para a Lume, mas também um certo vazio, uma certa paz. Enviei o roteiro para ela e logo no primeiro encontro ficou claro que tinha entendido a personagem e se emocionado muito. Antes das filmagens tivemos muitas conversas e ensaios. Uma das qualidades da Adriana é que ela trabalha de forma intuitiva e internaliza bastante a personagem. Mas ela também sabe ouvir, e eu estava lá para guiá-la levemente. Tivemos uma conexão tão boa que, no fim das filmagens, podíamos nos comunicar de forma telepática. Olhava para ela e ela já sabia o que fazer.

Adriana Matoshi em cena de “Zana” – Foto: Divulgação

Como o Kosovo, muitos outros países têm dificuldade de encarar o próprio passado – o Brasil, por exemplo, não lidou de fato com o legado da escravidão e da ditadura militar. Você acredita que o cinema pode ajudar as pessoas e a sociedade a lidar com traumas nacionais?

Acho que o cinema é crucial para isso. Por um lado, lança luz sobre essas histórias e nos permite conectar com experiências que não conheceríamos de outra forma, ou sobre as quais teríamos apenas uma compreensão conceitual. Mas o cinema também pode alterar as histórias que contamos. Durante séculos nos contaram uma determinada história sobre o que é a guerra e o que a guerra faz. E nós normalizamos essa história – a história dos heróis, dos feitos, dos sacrifícios, nas quais as vítimas são colocadas apenas como números. Essa é a história passada de geração a geração e lembrada nos memoriais e nos livros. Mas há um outro lado dessa história, um lado escondido, que se refere às múltiplas camadas de trauma e dor que acabam por moldar quem somos e aquilo pelo que lutamos. É muito importante olhar além do passado e do trauma, fazer perguntas sobre o que aconteceu e que impacto que teve sobre nós, como nos mudou e quem somos agora.


“O cinema nos permite conectar com experiências que não conheceríamos ou sobre as quais teríamos apenas compreensão conceitual. Mas o cinema também pode alterar as histórias que contamos. Durante séculos nos contaram uma determinada história sobre a guerra – a história dos heróis, dos feitos, dos sacrifícios, nas quais as vítimas são números. Mas há um outro lado dessa história, que se refere às múltiplas camadas de trauma e dor que acabam por moldar quem somos.”


Há grande contraste de tom, luz e cor entre as cenas reais e as de pesadelo. Sei que a diretora de fotografia, Sevdije Kastrati, é sua irmã. Como colaboraram para criar o visual do filme?

Tenho sorte de trabalhar com minha irmã, com quem divido muitas sensibilidades. Desde o início concebi que Zana seria um filme muito sombrio, mas muito bonito. Queríamos capturar a beleza da natureza e contrastá-la à escuridão dos sentimentos de Lume. Cresci em um vilarejo e adoro a beleza da natureza, do verde, do sol. Mas essa beleza pode ser opressiva quando você não é capaz de senti-la. Me lembro claramente de que, durante a guerra, a grama e as flores do vilarejo ficaram muito grandes, porque ninguém podia cortá-las. A natureza era generosa e indiferente às coisas horríveis que estavam acontecendo, o que nos dava certa paz e consolo. Ao mesmo tempo, também deixava tudo ainda mais doloroso, porque não podíamos aproveitar aquilo.

[Minha irmã e eu] queríamos criar esse mundo em contraste ao mundo interior da protagonista, que se expressa nos sonhos e é muito mais sombrio. Ao mesmo tempo, os dois mundos não são separados e era preciso transitar entre eles naturalmente. Vejo os sonhos como uma realidade paralela e queria apresentá-los exatamente assim. Durante o sonho, você não sabe que está sonhando: aquilo é tão real quanto a vida. Então queríamos que os sonhos parecessem reais e subjetivos, e que tivessem certa urgência. Por isso, há mais movimento nos sonhos do que nas cenas da vida real, num reflexo da paralisia que Lume está sentindo. Minha irmã é muito boa em criar imagens naturais e realistas, e também imagens poéticas e assustadoras. Isso fez com que fosse possível transitar pelas diferentes camadas de experiência ou de gêneros cinematográficos.

A atriz Adriana Matoshi e a diretora Antoneta Kastrati no set de “Zana”- Foto: Reprodução/Facebook

Você é a primeira diretora do Kosovo que entrevisto desde que o Mulher no Cinema foi criado, há seis anos. Poderia me contar um pouco sobre como é ser mulher e cineasta no seu país?

Comecei a fazer documentários com minha irmã em 2003, e nessa época estávamos meio que do lado de fora da indústria cinematográfica – que também já era muito pequena, quase inexistente, por causa da opressão e da guerra nos anos 1990. Criamos uma pequena produtora com foco em documentários sobre questões sociais. Fomos indo atrás de financiamento e fazendo os filmes. Crescemos em uma comunidade muito conservadora e patriarcal, então estávamos sempre lutando para seguir em frente. Só trabalhava com pessoas com as quais escolhia trabalhar e isso deixa tudo mais fácil: se cercar de pessoas que pensam como você.

Um acontecimento muito positivo da última década foi a criação do Centro Cinematográfico do Kosovo, que tem direção jovem e progressista. Foi estabelecido um sistema de distribuição de financiamento transparente e baseado em qualidade. Como resultado, muitos contemplados são cineastas jovens e mulheres. Nossa pequena indústria cinematográfica está crescendo devagar, e uma nova geração de cineastas está alcançando sucesso internacional. É um momento muito excitante, pois a maior parte deste sucesso está vindo das cineastas mulheres. Estou muito feliz em ser parte desta nova onda de filmes que está colocando o Kosovo no mapa do cinema. Há poucos meses, minha amiga Blerta Basholli ganhou três prêmios no Festival de Sundance com seu primeiro longa-metragem, HIVE. E há muito mas vindo aí!

Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?

Se você ama cinema e quer contar histórias, simplesmente faça isso e siga em frente. Fazer um longa-metragem é um processo difícil, longo e caro. É fácil desanimar quando as coisas dão errado, quando você não consegue o orçamento do qual precisa ou não pode contratar quem você quer. Mas é preciso ter paciência e encontrar soluções. Sei que é ainda mais difícil para as mulheres, principalmente as que estão no segundo ou no terceiro longa e conforme os orçamentos vão ficando maiores. Mas as coisas estão começando a mudar na direção certa. Há mais espaço e mais bolsas sendo dadas às mulheres, é um bom momento. Explore aquilo que te atrai, ouça sua voz e faça o filme que você quer fazer. O cinema ainda é uma arte jovem e me animo com as possibilidade de seguir ultrapassando fronteiras e conceitos sobre o que é um filme. Pelo que tenho visto nos últimos anos, as cineastas mulheres já estão fazendo isso, principalmente misturando gêneros.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Gareth Cattermole/Contour by Getty Images

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