Sofia Coppola investiga conflitos geracionais em “On the Rocks”

Começa muito bem o novo filme de Sofia Coppola, On the Rocks, produção original da Apple TV que chega à plataforma nesta sexta-feira (23). Na primeira cena, Laura (Rashida Jones) e Dean (Marlon Wayans) trocam olhares e sorrisos durante sua festa de casamento. Depois, a câmera movimenta-se lentamente pelo vestido branco, o terno e outras peças de roupa jogadas, até chegar à piscina onde Laura mergulha e Dean observa. Em seguida, o mesmo movimento de câmera se repete, passando por roupas e brinquedos espalhados pelo chão, que alguém recolhe de forma quase mecânica. Nenhuma palavra é dita, mas a transição temporal está feita, e o contexto, estabelecido: a paixão virou rotina, a diversão virou responsabilidade.

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Nos outros seis longas-metragens que dirigiu, Coppola demonstrou inúmeras vezes esse mesmo poder de síntese, essa mesma capacidade de dizer tanto sem dizer nada. É um de seus maiores talentos: criar imagens marcantes e cheias de significado que contam mais sobre os personagens do que eles mesmos. Há, aliás, ocasiões em que os protagonistas até se expressam verbalmente, mas a diretora propositalmente impede que eles sejam ouvidos, seja pelo espectador ou por outro personagem. O que Bob disse ao ouvido de Charlotte em Encontros e Desencontros (2003)? Será que Cleo escutou o pedido de desculpas do pai em Um Lugar Qualquer (2010), apesar do barulho do helicóptero que decolava na mesma hora?

Elementos destes dois filmes – que talvez sejam os melhores da diretora – ecoam em On the Rocks, a começar pela presença de Bill Murray, estrela de Encontros e Desencontros, e pela trama que explora a relação de pai e filha, algo que Coppola fez muito bem em Um Lugar Qualquer. Há vários outros pontos de encontro, como a protagonista solitária e em crise que busca entender que tipo de pessoa quer ser; a investigação sobre conexões humanas a partir da dinâmica jovem mulher-homem mais velho; e a ambientação em uma cidade que é ao mesmo tempo locação e personagem: depois de Tóquio e Los Angeles, agora é a vez de Nova York, uma paisagem imediatamente melancólica no contexto da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).

É também uma Nova York dos ricos e privilegiados, na qual alguém deixa um apartamento enorme em Manhattan e vai – de carro e motorista particular (!) – até o icônico bar 21 Club tomar um drink na mesa em que Humphrey Bogart pediu Lauren Bacall em casamento. Os personagens compram na Cartier, têm obras de Monet em casa, comem caviar num conversível vermelho, e até as roupas aparentemente casuais da protagonista (blazer, blusa listrada, camiseta da revista Paris Review) são claramente caras e chiquérrimas. Como em filmes anteriores, Coppola ambienta On the Rocks num mundo que é bastante parecido com o seu, e que também deve ter algo de familiar à Rashida Jones – a diretora tem 49 anos e é filha de Francis Ford Coppola e Eleanor Coppola; a atriz tem 44 e é filha de Quincy Jones e Peggy Lipton.

Sofia Coppola com Rashida Jones e Bill Murray no set de “On the Rocks”

É Jones, ou Laura, quem aparece recolhendo as roupas e brinquedos na cena inicial de On the Rocks. Ela é uma escritora que aparentemente tem tudo: família, saúde, dinheiro, um contrato para escrever seu novo livro. Mas aos quase 40 anos, Laura enfrenta uma crise criativa e de identidade. De um lado, há as obrigações da maternidade (levar à escola, buscar no balé, colocar para dormir); de outro, a preocupação com a possibilidade de o marido, Dean, estar tendo um caso com a colega de trabalho, Fiona (Jessica Henwick). A suspeita se baseia nas constantes viagens de Dean, no fato de uma necessaire de Fiona ter ido parar nas coisas dele (ele tinha espaço na bagagem de mão, ela não – dizem) e, principalmente, na opinião do pai de Laura, Felix (Murray). Tendo ele estado com inúmeras mulheres e sido infiel no casamento, sua palavra é tida como a de um especialista, e logo pai e filha estão seguindo Dean pelas ruas e investigando suas compras no cartão de crédito.

A missão de detetive é uma tentativa de Felix de passar mais tempo com a filha, de dar conselhos, de ser útil, parceiro, presente. Ele adora Laura, mas passou a vida dizendo e fazendo o que queria com as mulheres, inclusive as da sua família, e continua se comportando da mesma maneira enquanto o mundo muda ao seu redor. Dos comentários machistas que faz às garçonetes às explicações sobre como trair é da natureza do homem, Felix representa conceitos no qual Laura não acredita, mas aos quais se acostumou a responder apenas revirando os olhos. Colabora o fato de Felix ser charmoso, como é o próprio Bill Murray e também a própria Jones. Os dois formam uma boa e carismática dupla, dominando quase todo o filme e deixando pouco tempo para os demais personagens (Wayans é uma escolha interessante como Dean, mas está sempre apenas chegando ou saindo, e Jenny Slate rouba a cena como uma mãe solteira que narra suas aventuras amorosas).

Em que pesem as semelhanças de On the Rocks com Encontros e Desencontros e Um Lugar Qualquer, o novo filme também toma um caminho fundamentalmente diferente ao deixar que o diálogo prevaleça sobre o clima. A cena inicial é mais exceção do que regra em On the Rocks. Quando chega a hora de Laura dizer o que pensa sobre o pai, ela o faz em alto e bom som, num quase monólogo. No momento do pedido de desculpas, nenhum helicóptero alça voo. E embora os filmes de Sofia Coppola não sejam exatamente enigmáticos, a resolução dada à crise de Laura é especialmente mastigada, e não convida o espectador a imaginar o que aconteceu depois.

Não é que os diálogos sejam horríveis, mas eles não têm a mesma contundência das imagens da diretora. Em seus melhores trabalhos, Coppola cria uma atmosfera envolvente e cheia de espaços em branco, permitindo ao espectador fazer uma leitura mais pessoal do que vê em cena. Como resultado, a conexão com o filme costuma ser mais forte, o que aumenta a possibilidade de a obra transcender e de ficar por mais tempo com quem assiste. Em On the Rocks, as regras do jogo estão mais claras, e a jornada, embora razoavelmente prazerosa, é menos satisfatória. Assim como Laura parece se transformar muito menos do que outras protagonistas de Coppola, também o espectador sai deste filme menos impactado.

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Este filme passa no teste de Bechdel-Wallace“On the Rocks”
[EUA, 2020]
Direção: Sofia Coppola
Elenco: Radisha Jones, Bill Murray, Marlon Wayans, Jenny Slate.
Duração: 96 minutos


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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