Premiado em Veneza, “O Acontecimento” retrata solidão do aborto

Apesar de ambientada quase seis décadas atrás, é dolorosamente atual a trama de O Acontecimento, premiado filme da diretora Audrey Diwan que chegou na quinta-feira (7) aos cinemas brasileiros. A história da jovem francesa que busca interromper uma gravidez indesejada em 1963 dialoga com dois acontecimentos reais das últimas semanas: o caso da menina de 11 anos que, vítima de estupro, foi impedida pela Justiça de realizar um aborto legal em Santa Catarina; e a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de reverter a lei conhecida como Roe vs. Wade, que garantia o aborto como direito constitucional.

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É claro que a diretora não poderia antecipar estas ou quaisquer outras notícias relacionadas ao aborto na hora de escrever, filmar ou lançar o longa, uma adaptação do livro homônimo de Annie Ernaux. Mas Diwan sabia que a história de sua protagonista não estava no passado, e por isso marcou os anos 1960 apenas sutilmente, nos figurinos das personagens e na música que toca nas festas. Seu filme se passa em outro tempo, mas não adota tom de página virada, mesmo que a França tenha legalizado o aborto em 1975.

A trama de O Acontecimento é inspirada na experiência da própria Ernaux e foi adaptada para as telas por Diwan em parceria com Marcia Romano. A ótima Anamaria Vartolomei interpreta Anne, uma talentosa e esforçada estudante imersa nas aulas, provas, festas e descobertas típicas da vida universitária. Ela quer ser escritora e seu futuro profissional parece promissor, mas está ameaçado por uma gravidez que Anne não desejou nem planejou. A jovem, então, tenta encontrar uma forma de realizar um aborto numa sociedade em que a prática é proibida e pode levá-la à cadeia, bem como qualquer pessoa que tentar ajudá-la.

Imagem do filme “O Acontecimento”, de Audrey Diwan

O Acontecimento é um daqueles filmes que quer colocar o espectador na pele da protagonista, fazendo-o sentir a mesma tensão e o mesmo medo que ela sente. Diferentes recursos cinematográficos são utilizados para isso, a começar pela contagem do tempo narrativo, que se dá pelas semanas de gravidez. A cada vez que uma tela preta suspende a ação e um novo número se apresenta, entendemos que os dias estão passando e as opções de Anne, diminuindo. Da mesma forma, a proporção de tela de 1:37:1, menor do que o widescreen a que estamos acostumados, reforça a sensação de claustrofobia e de portas que vão se fechando.

A câmera também é frequentemente posicionada nas costas de Anne, para revelar personagens, objetos e situações a partir de seu ponto de vista. E algumas cenas, justamente as mais dramáticas, têm poucos ou nenhum corte, evitando distrações e disfarces: quem assiste a O Acontecimento precisa de fato estar com aquela jovem e ver aquilo sobre o que há tanta dificuldade de se falar.

Em entrevistas, Diwan disse que queria fazer um filme sobre liberdade e os desejos de uma jovem mulher. E, de fato, ao mesmo tempo em que O Acontecimento é tenso e difícil de assistir, há algo de prazeroso em testemunhar a determinação inabalável de Anne para ter o controle de todos os aspectos de sua vida. É especialmente interessante o modo como Diwan aproveita a temática do aborto para trabalhar a questão da sexualidade. Enquanto os homens do filme flertam livremente e têm diferentes relacionamentos casuais, qualquer ação ou rumor pode atentar contra a reputação das garotas e virar razão para hostilidades, inclusive entre elas mesmas. As conversas sobre sexo são sempre em tom de segredo ou confissão e com frequência há menção ao medo de ficar grávida. Para as meninas do filme, como para tantas meninas hoje, não apenas o aborto está proibido, mas também o próprio desejo sexual. 

Imagem de “O Acontecimento”, dirigido por Audrey Diwan

Mas talvez o aspecto mais contundente de O Acontecimento seja o modo como retrata o isolamento imposto às jovens que recorrem ao aborto. Embora a sociedade discuta a criminalização ou a legalização como questão coletiva, sobre a qual todos – políticos, juízes, líderes religiosos, homens em geral – podem ter opinião, o filme de Diwan lembra que, na prática, a maior parte das mulheres passa pelo aborto sozinha. É uma reflexão necessária e presente em outros longas recentes, como o ótimo drama ficcional Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (2020), de Eliza Hittman, e o documentário Meu Corpo, Minha Vida (2017), de Helena Solberg, que relembra o caso real de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, morta no Rio de Janeiro, em 2014, após um procedimento clandestino em uma clínica gerenciada por milicianos.

Nas primeiras cenas de O Acontecimento, Anne dança em festas, participa das aulas e está sempre cercada de amigas que a admiram. Aos poucos, vai ficando cada vez mais sozinha, já que o principal efeito da criminalização do aborto é tirar dela toda e qualquer possibilidade de apoio. Como tantas mulheres da vida real, ela não pode se amparar nos pais, não pode conversar com os professores, não pode confiar nos médicos, não pode contar com os amigos ou dividir a responsabilidade com o pai da criança. No diálogo mais marcante do filme, um garoto pergunta à Anne: “Qual é o seu problema?”. A resposta é triste e precisa: “Solidão”.

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Este filme passa no teste de Bechdel-Wallace“O Acontecimento”
[L’événement, França, 2021]

Direção: Audrey Diwan
Elenco: Anamaria Vartolomei, Kacey Mottet Klein, Luàna Bairami.
Duração: 100 minutos


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema.

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