Greta Gerwig celebra e atualiza a clássica história de “Adoráveis Mulheres”

Dar cara nova a uma história clássica era o desafio da diretora e roteirista Greta Gerwig em Adoráveis Mulheres, filme que estreia nesta quinta-feira (9) nos cinemas e é a mais recente versão para as telas do livro escrito por Louisa May Alcott (1832-1888). Sucesso de vendas desde que foi publicada pela primeira vez, em 1868, a obra já foi levada ao cinema outras seis vezes entre 1917 e 2018, além de ter sido adaptada para peças de teatro, musicais, telefilmes, séries de televisão, óperas e animes.

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No Brasil, o livro recebeu várias edições desde 1934, às vezes com o título de Mulherzinhas. Ainda que não tenha tanta popularidade por aqui quanto nos países de língua inglesa, a obra também é bastante conhecida e citada em contextos tão diferentes quanto a série Friends e a tetralogia napolitana de Elena Ferrante.

Para quem não conhece a história, eis um breve resumo: Adoráveis Mulheres acompanha a vida das irmãs March, quatro jovens que vivem na região de Massachussets, nos Estados Unidos, e têm personalidades e aspirações diferentes. Meg (interpretada no filme por Emma Watson) é tradicional, responsável e obediente; Beth (Eliza Scalen), é tímida, gosta de tocar piano, é querida por todos e nunca briga com ninguém; Amy (Florence Pugh, excelente no papel) tem talento para as artes plásticas, é vaidosa e vai atrás de seus objetivos; e Jo (Saoirse Ronan, também excelente), tem gênio forte, é independente, adora ler e sonha em ser escritora.

Jo é a protagonista do livro e do filme, uma personagem que já foi citada como inspiração por mulheres como Simone de Beauvoir (1908-1986), Patti Smith, J.K. Rowling, Sonia Sanchez e a própria Greta Gerwig. Em entrevistas, a cineasta contou ter lido Adoráveis Mulheres várias vezes durante a adolescência, quando começou a se interessar pela escrita e a dramaturgia. Ao reler a obra já adulta, sentiu que as palavras de Alcott, publicadas há tanto tempo, tinham algo a dizer sobre os tempos atuais. Então, procurou a produtora Amy Pascal, que queria desenvolver uma nova versão da obra, e foi contratada para escrever o roteiro. Após lançar o sucesso Lady Bird: A Hora de Voar, sua estreia solo na direção, Gerwig foi também convidada a dirigir.

Greta Gerwig e o diretor de fotografia Yorick LeSaux no set de “Adoráveis Mulheres”

O livro de Alcott foi publicado e é dividido em duas partes: na primeira, as irmãs March são adolescentes e vivem com a mãe enquanto o pai, um pastor, está na Guerra Civil Americana (1861-1865); na segunda, que se passa três anos depois, as irmãs entram na vida adulta e começam a lidar com o amor, as possibilidades profissionais e a morte. Em sua adaptação, Gerwig abandonou o formato cronológico, ampliou o intervalo temporal para sete anos e estabeleceu idas e vindas entre adolescência e vida adulta (um tempo mais fácil, o outro mais difícil) que provocam uma frequente mudança de tom que o livro não tem.

A naturalidade com a qual Gerwig navega pelo tempo é um dos grandes pontos fortes do filme. Não há um único momento em que o salto se torna confuso ou pareça forçado, e todas as cenas de passagem são visualmente muito bonitas, com passado e presente unidos por uma locação, um objeto, um enquadramento ou um movimento de câmera em comum. Movimento, aliás, é palavra-chave em Adoráveis Mulheres, e não apenas por uma extraordinária cena em que Jo e Laurie (o vizinho e amigo das meninas, interpretado por Timothée Chalamet) dançam do lado de fora de uma festa. Gerwig e o diretor de fotografia francês Yorick Le Saux (de Um Sonho de Amor e Acima das Nuvens) constroem muitas das cenas quase como um espetáculo teatral, com os personagens entrando e saindo de quadro em diálogos muito rápidos, nos quais uma fala mal termina e outra já começa. Seja dentro da simples, porém aconchegante casa iluminada por velas ou nas amplas e belas locações externas, Adoráveis Mulheres recria o universo quase mágico do livro, contando também com o excelente trabalho da figurinista Jacqueline Durran e da equipe de direção de arte supervisionada por Chris Farmer.

Gerwig claramente quer celebrar a obra original, mas isso não significa ser totalmente fiel a ela. A atualidade de Adoráveis Mulheres esbarrava no final de Jo, compreensível para a época, mas não muito sintonizado ao presente. Gerwig encontrou uma solução engenhosa e inspirada na biografia da própria Alcott, adicionando ao roteiro pensamentos e acontecimentos descritos em cartas e diários. Não se trata de uma repaginada radical: Adoráveis Mulheres é, na verdade, um filme bastante clássico. Mas há uma reflexão interessante e metalinguística sobre as mulheres e a arte: os destinos permitidos às personagens femininas nos tempos de Jo/Alcott são muito diferentes dos destinos permitidos às protagonistas dos filmes hollywoodianos, por exemplo? Em que pesem os avanços sociais, as barreiras econômicas não seguem freando principalmente as mulheres? O mundo não segue sendo duro com as garotas ambiciosas, como diria Amy March?

Muitas das reflexões de Adoráveis Mulheres estão em Lady Bird, e também em Frances Ha e Mistress America, filmes que Gerwig coescreveu em parceria com o diretor Noah Baumbach. Suas protagonistas são mulheres com grandes ambições (em geral artísticas) que ainda não chegaram lá, e que pensam que poderiam ter chegado se as circunstâncias (muitas vezes financeiras, mas não só) fossem outras. Ao longo da narrativa, elas amadurecem e avançam de alguma forma, mas não necessariamente se aproximam da vida à qual acreditam estar destinadas.

Cena do filme “Adoráveis Mulheres”, de Greta Gerwig

É fácil descartar filmes como os de Gerwig como pouco relevantes ou simples demais, mais fácil ainda porque abordam as vidas das mulheres, um tema que muitos não encaram como universal. E é de se pensar se isso não tem algo a ver com o reconhecimento abaixo do esperado de Adoráveis Mulheres na temporada de prêmios, e com os muitos comentários que atribuem uma eventual indicação de Gerwig ao Oscar de direção (bem como a que recebeu em 2018 por Lady Bird) ao fato de ela ser mulher. No último fim de semana, quando Gerwig ganhou o prêmio de direção de uma das mais importante associações de críticos dos Estados Unidos, a criadora de um blog sobre premiações convocou seus seguidores no Twitter a dizer se, “deixando todas as outras coisas de lado”, achavam Adoráveis Mulheres um filme melhor dirigido do que O Irlandês, de Martin Scorsese, Parasita, de Bong Joon-ho, e Era uma Vez em Hollywood, de Quentin Tarantino.

A pergunta é um tanto simplista e trata a arte com um grau de objetividade que não lhe é próprio. Mas ela me lembrou de um texto publicado por Martha P. Nochimson na revista Salon, em 2010, quando Kathryn Bigelow estava prestes a se tornar a primeira (e até hoje única) mulher a ganhar o Oscar de direção. Discordo de grande parte dos argumentos de Nochimson, que atribui o interesse de Bigelow por gêneros tidos como masculinos (guerra, ação) a uma tentativa de “se disfarçar de menino durão e ganhar o respeito da indústria”. Pessoalmente, acho que homens e mulheres podem fazer (e gostar de assistir a) qualquer tipo de filme. Mas é interessante notar que, de fato, a única vez que uma diretora foi reconhecida pelo maior prêmio da indústria americana, foi por um filme de guerra e protagonizado por homens. “A máquina de Hollywood”, escreveu Nochimson, “preserva a hierarquia dos homens sobre as mulheres e a paisagem militar sobre a doméstica.” 

O roteirista Tyler Ruggeri fez uma reflexão similar no Twitter, argumentando que se convencionou considerar como boa a direção que parece mais ambiciosa ou ter exigido mais esforço. “Se um filme não parece dirigido, não há interesse em recompensá-lo”, escreveu, acrescentando que cineastas mulheres [ele cita Gerwig, Olivia Wilde, Lulu Wang, Lorene Scafaria, Céline Sciamma e Marielle Heller, todas com longas lançados em 2019] têm, ao contrário, “abundante talento em fazer as coisas parecerem naturais e fáceis.”

Não concordo com toda a argumentação de Ruggeri, de novo por resistir à ideia de que existam modos masculinos e femininos de filmar. O feminino é múltiplo e as cineastas mulheres não estão necessariamente unidas por determinados traços estéticos, formais ou narrativos. Mas ele levanta um bom ponto no que diz respeito à valorização maior do cinema que parece difícil, ambicioso, sofrido, e ao destacar que um dos grandes talentos de Gerwig é justamente a naturalidade, o modo quase invisível como deixa sua marca. Isso é verdade tanto em seu trabalho como atriz quanto por trás das câmeras: ela é especialmente boa em criar personagens e universos que o espectador reconhece e ao qual se conecta muito facilmente.

Me parece notável, por exemplo, que eu tenha me envolvido quase que instantaneamente com as personagens de Adoráveis Mulheres mesmo sem nunca ter lido o livro (só o fiz depois do filme) nem ter assistido a nenhuma das adaptações para o cinema, a televisão ou o teatro. De alguma forma inexplicável (ou não?), antes que o longa chegasse na metade eu me senti não apenas como se já conhecesse as irmãs March, mas como se tivesse uma memória afetiva delas. Era como se eu, tal qual Gerwig, tivesse crescido com aquela história.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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