Candidato da Geórgia ao Oscar, “Beginning” faz estudo sobre mulher no limite

“Tudo o que você tem é o tempo”, disse, certa vez, a cineasta Chantal Akerman (1950-2015). “Nos meus filmes, você está ciente de cada segundo que passa, através do seu corpo. Você está diante de si mesmo. Você está cara a cara com o outro. É a partir deste face a face fundamental que seu senso de responsabilidade se inicia.”

Este comentário e a obra de Akerman – especialmente a obra-prima, Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) – ecoam forte em Beginning, premiado longa de estreia da diretora e roteirista Déa Kulumbegashvili. Candidato da Geórgia ao Oscar de filme internacional e lançado exclusivamente no catálogo do Mubi, Beginning referencia Jeanne Dielman não apenas em uma cena-chave na qual a protagonista corta pepinos na cozinha, mas no próprio modo como, para usar as palavras de Akerman, coloca o espectador cara a cara com uma mulher aprisionada pela sociedade e o ambiente doméstico.

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Yana (a ótima Ia Sukhitashvili) deixou a carreira de atriz para se casar com David (Rati Oneli, co-autor do roteiro), líder da comunidade de Testemunhas de Jeová de uma pequena cidade da Geórgia. Como mulher de David, a principal função de Yana é preparar crianças e adolescentes para o batismo – incluindo seu próprio filho, Giorgi (Saba Gogichaishvili). Mas o filme sugere que, para Yana, a religião é antes de mais nada uma consequência do casamento. E se manter-se ao lado do marido e da comunidade está cada vez mais difícil, abandoná-los também parece impossível, o que a deixa em constante estado de inquietação interna.

Cena de “Beginning”, longa da diretora Déa Kulumbegashvili

As inquietações de Yana explodem a partir de uma explosão literal: durante uma reunião dos Testemunhas de Jeová, no momento em que discutem as lições da história de Abraão, alguém abre a porta e atira um coquetel Molotov. Um incêndio começa, o fogo consome o local. Mais tarde, uma conversa entre Yana e David revela não se tratar do primeiro ataque. Num país no qual católicos ortodoxos são maioria, os Testemunhas de Jeová são constantes alvos de extremistas que nunca são punidos pela justiça. Ao longo dos anos, o casal sucumbiu à pressão mudando de cidade e abandonando as queixas policiais, coisas que, desta vez, David se recusa a fazer.

O ataque serve primeiro para escancarar a crise de Yana, potencializada, posteriormente, pela visita de um detetive que aparece em sua casa para pressioná-la. Mas também serve para deixar o espectador em um estado de tensão que a diretora cultivará formalmente do início ao fim. Beginning é quase inteiramente formado por planos médios e estáticos, e troca o widescreen pela proporção de tela de 1,33:1, que não apenas reforça o confinamento e solidão da protagonista, como também limita nossa compreensão do espaço. Há vários momentos nos quais uma personagem fala, mas não é vista em cena, ou nos quais uma imagem de algo ou de alguém não é mostrada por inteiro. Sente-se que qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento, e que sempre há mais coisas acontecendo do que aquelas que estão em quadro.

Cena de “Beginning”, dirigido por Déa Kulumbegashvili

A primeira discussão do casal marca uma das poucas cenas em que os dois estão sentados lado a lado e podem ser vistos de frente. Apesar de o quarto estar escuro, acompanhamos as expressões e reações de ambos conforme Yana tenta explicar sua frustração. “A vida passa como se eu não estivesse nela”, diz ela ao marido. “É como se estivesse esperando algo começar ou terminar.” As demais discussões de Yana e David, porém, são bem diferentes: às vezes apenas um deles está em quadro, sem plano e contraplano; em outras, só temos o reflexo em um retrovisor; em outras ainda, ouvimos as vozes de ambos mas tudo o que vemos é a janela do carro.

Da mesma forma, um dos atos mais brutais de Beginning não é mostrado, apenas sugerido e depois confirmado, num estilo que remete ao do diretor Michael Haneke. Outro momento de extrema violência é, ao contrário, mostrado na íntegra, mas de forma seca e distante. Sem movimentos de câmera, sem cortes e portanto sem distrações, somos forçados a ver Yana, a estar com ela e a sentir os efeitos das opressões que se aplicam sobre ela – a familiar, a social, a religiosa, a de gênero. Para isso, os planos longos são elementos cruciais. Em uma das cenas mais inquietantes do filme, por exemplo, Yana se deita em um gramado coberto de folhas, fecha os olhos e permanece praticamente imóvel por mais de cinco minutos. A nós, cabe observá-la, ouvir o som dos pássaros, notar um inseto em uma das folhas, sentir o tempo passar.

Trata-se, portanto, de um filme que confia na capacidade e disposição do espectador de estar presente, uma disposição que talvez seja fundamental para apreciá-lo. Selecionado para Cannes (na edição de 2020, afetada pela pandemia) e recordista de prêmios no Festival de San Sebastián, Beginning é um angustiante estudo sobre uma mulher no limite e uma promissora estreia para Déa Kulumbegashvili.

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Este filme passa no teste de Bechdel-Wallace“Beginning”
[Geórgia/França, 2020]
Direção: Déa Kulumbegashvili
Elenco: Ia Sukhitashvili, Rati Oneli, Kakha Kintsurashvili.
Duração: 130 minutos


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema. Os leitores do site têm direito a 30 dias de acesso grátis ao Mubi – clique aqui para saber mais e se cadastrar.

 

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