Crítica: “De Cierta Manera”, único longa de Sara Gómez

De Cierta Manera começa com uma espécie de tribunal informal que descobriremos mais tarde ser um Conselho de Trabalhadores no bairro de Miraflores, no subúrbio de Havana. De repente, um corte brusco nos coloca diante da demolição de um prédio. Entram os letreiros do filme junto a outras imagens de construções e demolições, que a câmera vai aos poucos deixando de lado para se aproximar das ruas e da população de Miraflores, bairro nos subúrbios de Havana que funciona como cenário-personagem.

Uma deslocada narração jornalística/onisciente informa que trata-se de um dos bairros mais pobres de Havana, aonde um pouco tardiamente chega agora a revolução, com novos edifícios, escolas, comitês e espaços de organização.

É nesse contexto que a jovem professora Yolanda vai viver e trabalhar numa escola do bairro. Culta, politizada e divorciada, filha de família de classe média que vivia no centro de Havana, ela entra em conflito ao descobrir uma realidade que ela pensava não existir mais em seu país – algo que conhecemos bem das grandes cidades brasileiras: casas de madeira, sem esgoto, luz, ausência de projeto urbanístico e equipamentos públicos como escolas e hospitais.

Yolanda se envolve com Mario, operário que nasceu e passou toda a vida em Miraflores. Ele se considera um revolucionário, embora não tenha alcançado ainda os direitos básicos que o Estado comunista cubano se propôs a garantir a toda população; é um trabalhador, mas mantém uma ética própria entre os amigos e companheiros de trabalho, bem distante do discurso de enobrecimento do trabalho propagado por Che e Fidel; aspira tornar-se membro de uma sociedade abakuá (organização religiosa influenciada pela maçonaria e pela religiosidade africana yorubá, da qual somente homens podem fazer parte), fortemente perseguida pelo governo entre meados dos anos 60 e 70.

A personalidade de Mario configura aquilo que em Cuba se entende por “marginalidade”, não no mesmo sentido que entendemos no Brasil. Engloba os hábitos e crenças que eram parte da sociedade cubana, mas foram ignorados ou excluídos do projeto social do Estado cubano revolucionário. Yolanda, por sua vez, é a faceta que deu certo no desenvolvimento social do país após a derrubada da ditadura de Fulgêncio Batista.

O romance entre os dois é uma pequena metáfora da Cuba que se desmonta e precisa se reconstruir após a revolução. A todo tempo o caminhar da narrativa romântica do filme é interrompido pelos excertos documentais, que de início têm enfadonho caráter jornalístico, mas aos poucos vão se convertendo em digressões que dialogam e questionam a trama ficcional (e vice-versa). Uma das melhores sequências do filme, por exemplo, é a cena em que o casal discute enquanto caminha pela Calle 23, e encontra um amigo de Mario; o momento de tensão é interrompido por uma sequência que nos apresenta a peculiar história deste amigo.

Sara Gómez, diretora do filme "De Cierta Manera"

Filmado em 1971, em pleno “quinquênio cinza” – período de 5 anos conhecido como o de pior repressão do governo comandado pro Fidel Castro – a diretora abre questionamentos sobre os rumos da sociedade cubana revolucionária: desapareceram todas as atividades e comportamentos “marginais” da ilha? Deveriam desaparecer? O que (ou quem) define o que é a marginalidade?

A forte protagonista feminina também suscita questionamentos diversos sobre a perpetuação do machismo na ilha. As ideias de Yolanda não se chocam apenas com as ideias de Mario, mas também com a condição social das mulheres do bairro de Miraflores. Eis outra pergunta fundamental que De Cierta Manera levanta: qual é o lugar da mulher em Cuba após a revolução? E o do homem?

O final do filme nos leva de volta ao tribunal informal da cena inicial, agora sob outro ponto de vista. Os protagonistas abandonam o tribunal antes que a decisão final seja anunciada, para voltar ao canteiro de obras que era o bairro de Miraflores naquele momento. Uma belíssima música romântica toca ao fundo enquanto a câmera se abre sobre os edifícios que se erguem e desfazem. O que vai ser – o que foi? – de Cuba daqui em diante?

Sem oferecer resposta para essas perguntas ou para o casal, de certa maneira o filme de Sara apenas radiografa a rotina de reconstrução de seu país, com seus desafios e contradições. Tristemente, Sara morreu antes de terminar a montagem do filme, que foi finalizado por Gutiérrez Alea e Julio García Espinosa conforme suas instruções. De Cierta Manera, no entanto, só estreou em 1977 (três anos após as filmagens e a morte de Sara), devido a dificuldades administrativas e censura. Não se sabe que tipo de modificação o filme pode ter sofrido. A originalidade formal e a contundência das ideias de Sara, no entanto, parecem intactas. Como até hoje nos parece a revolução cubana. De cierta manera.

Sara Gómez, diretora do filme "De Cierta Manera"
Sara Gómez, diretora do filme “De Cierta Manera”

Mas quem foi Sara Gómez?

De Cierta Manera é o primeiro e único longa-metragem da cineasta cubana Sara Gómez, cuja carreira foi interrompida por sua morte aos 31 anos, em 1974, devido a complicações de uma crise de asma.

Entre 1960 e o ano de sua morte, foi a única cineasta mulher (e negra, e feminista) atuando no ICAIC, o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica, o primeiro órgão cultural criado após a revolução, em 1959. Ao longo de dez anos, Sara dirigiu 16 documentários. Entre os mais importantes estão Guanabacoa – Crónica de mi Familia, em que investiga as origens africanas de sua família; e o polêmico Mi Aporte, no qual entrevista mulheres sobre “la zafra de los 10 millones”, como ficou conhecido o projeto do governo cubano de colheita de 10 milhões de toneladas de cana de acúcar no ano de 1970.

Se a trajetória tão curta parece trágica, por outro lado é ainda pouco conhecida e muito peculiar. Sara começou no universo cinematográfico com Agnès Varda, que – assim como Chris Marker, Joris Ivens e outros cineastas solidários à revolução cubana – viajou à ilha para filmar, em 1963, o documentário Salut le Cubains. Lá, o recém-criado ICAIC designou Sara para acompanhar e trabalhar como assistente de direção da documentarista francesa.

Mais tarde ela trabalhou como assistente de direção de Tomás Gutiérrez Alea (Memorias del Subdesarollo, Morango e Chocolate) no filme Cumbite. Alea assina junto com Sara o intricado roteiro de De Cierta Manera, e alguns anos após a sua morte dirigiu Hasta Cierto Punto, assumidamente influenciado pelo longa da cineasta.


* Jornalista e apaixonada por cinema, Beatriz Macruz aceitou nosso convite para aderir à campanha #52FilmsByWomen e assistir a um filme dirigido por mulher toda semana durante um ano. Os títulos de cada semana são revelados às segundas-feiras nas nossas redes sociais. Clique aqui para saber mais.

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