Paula Gomes: “Não tenho interesse em filmar sem me envolver”

Um simples telefonema deu início ao que se tornaria o primeiro longa-metragem da diretora baiana Paula Gomes. Do outro lado da linha estava Jonas Laborda, um adolescente que ela conhecera muitos anos antes durante uma pesquisa sobre circos, e cuja família tinha deixado as apresentações para tentar uma vida melhor. Ao telefone, Jonas contava que agora era dono de seu próprio circo, e convidava a diretora para um espetáculo. Local do show: o quintal de sua casa.

“Quando encontrei aquele quintal, com tudo que tinha restado do circo da família, aquelas arquibancadas velhas, pedaço de lona…quando vi aquele cenário já senti que ali tinha um filme”, contou Paula, em entrevista ao Mulher no Cinema.

O resultado deste encontro é Jonas e o Circo Sem Lona, documentário que está em cartaz nos cinemas brasileiros e já foi exibido em 20 países. Rodado ao longo de dois anos, o filme acompanha a persistência de Jonas em dar continuidade ao sonho de trabalhar no circo, treinando os amigos e criando espetáculos para os vizinhos na Região Metropolitana de Salvador. Retrata, também, os desafios da educação pública no Brasil: enquanto a mãe de Jonas vê os estudos como a grande oportunidade, o filho se sente desestimulado por uma escola que não atende ou incentiva seus principais interesses.

Ao contar essa história, a sensibilidade da diretora transborda para a tela: em muitos momentos, ela é conselheira de Jonas, confidente da mãe e parte da rotina da casa da família. Na entrevista a seguir, feita por telefone, Paula relembra os bastidores das filmagens e conta como foi fazer um documentário estando tão envolvida com os personagens retratados. Aos curiosos, ela também revela o que aconteceu com Jonas, que no começo das filmagens tinha 13 anos e, agora, tem 19.

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Como começou o projeto e como você chegou ao Jonas?
Em 2006 meu coletivo ia filmar um curta que também tinha o circo como pano de fundo. Na época, todo mundo falava: “Que legal, mais um filme felliniano”, “mais uma homenagem ao [cineasta italiano Federico] Fellini”. Ficamos assustados ao descobrir como, no cinema, o circo tinha ficado marcado dessa forma. Decidimos tentar buscar um circo mais nordestino, mais próximo da vida da gente. Era para ser um fim de semana de pesquisa em três circos perto de Salvador. Só que o universo era tão fantástico que paramos a produção do curta e durante três meses visitamos 35 circos na Bahia. Em um deles estava a família do Jonas. Fiquei bem amiga da mãe dele, bem próxima da família, e acompanhei quando deixaram o circo. O Jonas era bem pequeno, mas já naquela época não se acostumava em estar fora. Anos mais tarde ele me ligou dizendo que agora era dono de circo e me fazendo um convite para ir ver um espetáculo. Quando cheguei e encontrei aquele quintal, com tudo aquilo que tinha restado do circo antigo da família: aquelas arquibancadas velhas, pedaço de lona…quando vi aquele cenário já senti que ali tinha um filme. Só não sabia qual. Isso só descobri durante o processo.

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A família foi receptiva ao projeto?
Eles foram não só receptivos, mas fundamentais, porque na época não tínhamos conseguido financiar a filmagem. Tínhamos nos inscrito em um edital que não rolou, e não havia mais tempo para captar porque o Jonas estava crescendo. Decidimos [começar a filmar] sem grana, e se a família não tivesse nos acolhido , o filme não teria saído. Ficamos alguns dias na casa deles, outros numa casa vizinha da família…então a gente realmente topou viver junto. E pensamos [a equipe] em estratégias para que a vida não deixasse de acontecer porque estávamos filmando. Tivemos muitas jornadas de trabalho sem filmar nada, sem nem tirar a câmera da mala, nas quais ficamos apenas conversando, ajudando nas tarefas de casa, como se fôssemos moradores mesmo, para quebrar aquele protocolo “temos uma visita, não vamos discutir”. Quando a gente deixou de ser visita, o filme começou a acontecer de verdade. 

Seu documentário é sobre uma história que acontecia enquanto você filmava, com muitas variáveis e possibilidades sobre as quais você não tinha controle. Foi difícil filmar assim?
É difícil começar a filmar uma história da qual você não sabe o fim. A gente tinha detectado que aquele circo não ia durar para sempre – não era difícil saber disso, porque circos no quintal não duram para sempre. E já tínhamos observado que ele tinha começado a ter problemas com os amigos, que aquele era o sonho de Jonas, mas não dos outros. Mas foi angustiante não saber para onde o filme ia nos levar. O documentário tem a capacidade de surpreender, e é preciso estar aberto a isso. No projeto [do filme], escrevi mil vezes que não faria entrevistas, que eu e Jonas nunca iríamos conversar. Mas durante o processo ele quis conversar, e foi maravilhoso ter estado aberta a isso. Hoje, é uma das coisas de que mais gosto no filme.

De fato, fica claro que você têm uma ligação muito forte com ele e com a família. Como foi fazer um documentário tendo esse grau de envolvimento com seus personagens?
Foi natural. Não acredito muito em filmes nos quais eu não me envolva, não tenho muito interesse em fazê-los. Acho que já caiu por terra essa ideia de imparcialidade que venderam para a gente, que vem muito da televisão e do jornalismo, e que a gente sabe que é falsa. Tem uma pessoa ali, olhando para aquilo: uma pessoa que vem de um lugar, que tem uma bagagem, que está contando uma história. Nunca quis que a câmera estivesse fingindo não estar ali, porque o documentário é o encontro de um sujeito e um objeto que toparam viver uma aventura num tempo e num espaço. Então não é a verdade, é uma verdade. O pacto com o Jonas e com todo mundo que participou sempre foi esse: a história vai acontecer de um jeito porque a gente está aqui; se a gente não estivesse aqui filmando, ela seria outra história. Acho muito mais verdadeiro, mais forte e também mais interessante em termos de cinema quando a gente assume onde está, quando assume que, filmando, a gente transforma a realidade, que o que a gente conta vem da gente. Acho que muitas das nossas tragédias hoje, inclusive políticas, acontecem por causa desse fantasma da imparcialidade que a gente sabe que é falso. A partir do momento em que você sabe de onde o outro está narrando, você também se coloca.

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O filme me chama muito a atenção no que diz respeito à educação, por mostrar como aquela escola tem enorme dificuldade em estimular um menino que é obviamente muito criativo e talentoso. Como viu essa questão?
Foi muito forte para nós [da equipe] viver a escola. Foi um pouco como reviver a escola, porque também éramos aqueles alunos sentados no fundo da sala, também éramos um pouco Jonas. Fazendo cinema, também passei a vida escutando: “seja médica”, “seja advogada”, “passe num concurso”, “arranje um emprego”. Temos uma identificação muito forte com Jonas por estarmos fora de um sistema que quer que você seja uma coisa só, quando você quer ser muitas coisas diferentes. Não queria de jeito nenhum generalizar, porque sei que há professores fazendo trabalhos maravilhosos quando tudo é adverso e complicado. Mas acho importante questionar a educação quando ela não forma jovens questionadores. Aconteceu uma coisa muito bonita com a professora [retratada no filme]. Ela era bem rigorosa, mas ao mesmo tempo nos permitia filmar, o que diz muita coisa sobre ela. E como filmamos por muito tempo, todo mundo mudou. No fim, em uma de nossas conversas, ela falou: “Poxa, agora entendi. Não era só Jonas que era ruim para a escola; a escola também era ruim para Jonas.” Isso, para nós, valeu o filme. Depois, ela implantou atividades das quais o Jonas participou mesmo não estando mais na escola, que era só até a nona série. Ele foi dar aula de circo, de fogo…então houve transformações legais.

Como foi a resposta do público nos festivais internacionais, em se tratando de uma história tão brasileira?
A estreia foi logo no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA) e estávamos super tensos: um filme tão brasileiro, tão baiano, começar [a carreira] nesse lugar frio…E era o único filme latino em uma seção em que todos os outros eram sobre conflitos e guerra, pois era o auge da crise da imigração na Europa. Mas o filme foi super bem recebido, porque a questão do sonho realmente é universal. O festival distribui credenciais para pessoas que não são do cinema, e na nossa sessão um morador de rua falou: “Vi muitos filmes de guerra nesses dias, e o de vocês me pareceu o mais apropriado. Porque quando a gente está em guerra, não quer falar de guerra. Quer falar de sonho.” Ficamos muito emocionados com o fato de o filme chegar nesses lugares e nas pessoas. Temos recebido um carinho imenso.

O que o Jonas achou do filme?
Ele foi obviamente a primeira pessoa a assistir e ficou super emocionado, porque viu o documentário três anos depois de a gente ter começado a filmar. Ele se viu criança, a criança que não era mais. E ele não tinha a dimensão disso, pois achava que o filme seria sobre o circo dele. Então disse que estava muito feliz, que tinha amado, mas que tinha só uma crítica a fazer: “Essa professora é mesmo necessária?” [risos]

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Não costumo perguntar o que aconteceu depois que o filme acabou. Mas não vou resistir: como está o Jonas hoje?
Queria estar em todas as sessões para poder contar [risos] Logo depois que o filme terminou, a mãe dele estava muito cansada, se sentindo vilã. Então ela deixou ele ir para o circo, mas ele não quis mais ir. Até foi, por uma semana, mas eu tinha inscrito Jonas em uma companhia de teatro de Salvador, chamada Novos Novos, que é ligada ao Teatro Vila Velha. Ele foi selecionado em uma audição e ficou encantado. Então ele não foi para o circo do tio. [Hoje] está no último ano da escola e fazendo teatro e cinema. Nosso coletivo [Plano 3 Filmes] gravou um longa de ficção chamado Filho de Boi, no qual ele trabalhou como ator. Também oferecemos que ele aprendesse alguma função por trás das câmeras, e ele escolheu fotografia, então trabalhou como segundo assistente de câmera. Ele quer fazer faculdade de cinema e tem feito vários cursos e oficinas de fotografia, atuação, cinema, circo. E viajou muito com o filme também.

Que conselho daria para as mulheres que também querem ser diretoras?
É uma luta, porque o cinema ainda é um ambiente muito masculino, muito difícil. Hoje só tenho feito os projetos do coletivo, e a gente é bem pequeno, bem casa. Mas me lembro de trabalhar em filmes maiores e de o set ser um ambiente difícil para a mulher, em termos de assédio, de respeito. Acho que precisamos com urgência mudar essa coisa de a mulher estar sempre no lugar da produção, a que cuida da comida, do transporte. A gente precisa de filmes com olhares femininos, de filmes dirigidos por mulheres que contam histórias de mulheres. Isso tem ganhado força e há muitos coletivos de mulheres pensando o cinema. Meu conselho é não desistir, se associar a outras mulheres e tentar contar as suas próprias histórias.

Veja o trailer de Jonas e o Circo Sem Lona:


Foto do topo: Bram Belloni / Fotos do texto: Haroldo Borges

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