Joana Henning fala sobre mercado e novas janelas: “VOD não é vilão do cinema”

Apesar de existir há dois anos, a produtora Escarlate chegou oficialmente ao mercado brasileiro em 2017, colocando o cinema como prioridade. O primeiro longa, De Perto Ela Não É Normal, é inspirado no monólogo escrito e estrelado por Suzana Pires e será filmado no início de 2018.

À frente da Escarlate está Joana Henning, CEO da empresa, que fundou em parceria com o hoje ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão (depois da saída de Leitão, inicialmente para a Ancine, a empresa recebeu dois novos sócios, Melissa Donatti e Marcos André Pinto). Nascida em Brasília, Henning começou a carreira dedicando-se ao circo e à produção de eventos. Depois, expandiu para teatro, música e finalmente para o cinema.

“Identifiquei no audiovisual uma escola parecida com a do circo. Guardadas as devidas proporções, são grandes produções em tamanho e volume, que também têm de ser montadas e desmontadas muito rapidamente”, afirmou, em entrevista ao Mulher no Cinema.

Na Escarlate, Joana defende um modelo de gestão que realize sociedades específicas para a execução de cada projeto. Seja na produção de filmes ou de eventos, que também integram a cartela da empresa, a ideia é montar diferentes planos de negócio para diferentes propósitos. Leia os principais trechos da entrevista:

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Sua produtora entrou oficialmente no mercado. Como é a atuação da empresa?
A Escarlate hoje tem 80% dos projetos voltados para audiovisual e destes, 90% é para cinema. Desde que o Sérgio [Sá Leitão] saiu, todas as seis pessoas que trabalham no escritório, no dia a dia da produtora, são mulheres. A empresa tem dois anos e vai lançar, como primeiro filme, De Perto Ela Não é Normal, que foi escrito pela Suzana Pires. Ela também entrou como produtora associada, além de interpretar três personagens.

O cinema às vezes parece ser um dos últimos focos de algumas produtoras, depois de YouTube, séries, publicidade…
É que o fluxo do cinema é muito lento. Tudo demora muito. A gente está há dois anos com uma carteira de 22 projetos no mercado e só agora vai começar a entrar o fluxo financeiro do primeiro.

Então por que este foco?
Um das características da Escarlate é exatamente não trabalhar por fluxo, mas, sim, por conteúdo. Conseguimos criar um esquema de investimento que mantém a produtora até o primeiro fluxo entrar e aí o primeiro fluxo alimenta os fluxos que se seguem a partir do administrativo da empresa. Trabalhamos de acordo com o que o conteúdo solicita. Não vou assinar um contrato de produção publicitária para manter um caixa. Pegamos um roteiro, vemos qual equipe funciona, qual o tempo de desenvolvimento e o budget que ele pede, como vamos conseguir esse budget, como vamos criar o business plan de acordo com a natureza do projeto…Avaliamos cada negócio de acordo com o que o conteúdo pede. E em paralelo produzimos eventos, que mantêm um pouco o fluxo que as produtoras de audiovisual precisam para se sustentar.

A Escarlate se propõe a não depender de financiamento público. Como pretendem fazer isso?
Depender do governo, hoje, é um pouco suicida, porque o governo está instável. Mas, na verdade, o propósito vem da natureza do projeto. Dos oito filmes que estamos desenvolvendo, apenas dois são de diretores e roteiristas estreantes. Estes até colocamos em editais – de alguns ainda não recebemos resposta, em outros não fomos aprovados. Mas todos os demais projetos são de cunho comercial, visam lucro e receita de bilheteria. Se tenho cunho comercial, para mim é muito melhor fazer um plano de negócios com investidor privado, ou com mecanismos de automático do Fundo Setorial, que é um dinheiro incentivado mas destinado ao investidor. A estratégia é colocar todas aquelas pessoas como sócias do projeto, investindo no lucro dele e fazendo com que tenha potencial de retorno. Se não tenho essa garantia de bilheteria e o propósito do projeto é lançar alguém, desenvolver conteúdo experimental ou fazer um documentário sobre um assunto que não tem apelo ao público, aí sim posso pensar em um mecanismo que não vise retorno. Grandes produtores do cinema independente precisam ir para festivais, precisam posicionar o país no mundo. Não faz sentido você disputar um edital [com um filme] que vai te dar retorno de bilheteria enorme, e não tem cunho de retorno imaterial.

E aí ocupar o espaço de um projeto que precisa mais desse dinheiro.
Exatamente. E além disso, o dinheiro público que não é dos mecanismos de automático dá muito trabalho. Você precisa ter um propósito bem específico. É uma discussão que vem de muito tempo, mas acho que se a gente não tiver compromisso com os nossos mecanismos de fomento, criamos um caos. Tudo fica bagunçado e daqui a pouco os próprios patrocinadores começam a desvirtuar a relação de patrocínio. Vivemos um pouco essa crise – a crise da Lei Rouanet, a opinião pública. Tudo começa a ficar muito confuso e as coisas passam a perder o valor. Então temos esse compromisso de sempre analisar a natureza do projeto, não só entre os filmes mas também no caso dos eventos – se vai ser incentivado, em qual linha etc. Temos de cuidar do nosso dinheiro, para que todo mundo tenha e para que ele volte.

Neste momento, sente interesse das empresas em patrocinar o cinema nacional?
Acho que o mercado está bem aquecido. Vejo que temos uma crise de bilheteria, mas não acho que ela tem a ver com o desenvolvimento do mercado, mas, sim, com o aumento das produções. Passamos de 30 para 150 produções por ano, então é um vácuo natural: quando o desenvolvimento é acelerado, o espectador ainda não acompanha no consumo. Mas não acho que temos uma crise de investimento. Estou vendo o mercado bem aquecido e minha expectativa é boa.

A Escarlate também está buscando coproduções e pensa em abrir um escritório em Los Angeles, nos Estados Unidos. Há um interesse maior do mercado americano pelo conteúdo brasileiro?
O Brasil ocupa uma posição muito boa no [que diz respeito ao] financiamento para o audiovisual. Mas sempre tivemos um gap de mercado e de investimento. Acho que estamos alcançando a ideia de mercado na qual o americano acredita. A Escarlate está iniciando sua primeira coprodução, Colors, que será um filme americano com equipe brasileira. Vamos filmar lá, com elenco de lá, mas com diretor, roteirista, fotógrafo, câmera e montador brasileiros. E o que o Brasil colocar de dinheiro, os EUA têm de colocar também. É um desafio enorme, pois as legislações são muito diferentes. Mas é possível.

As empresas americanas de video on demand, como Netflix e Amazon, também são uma aposta?
Elas entenderam que o investimento em conteúdo é fundamental – e a Netflix tem oito milhões de assinantes no Brasil, então não há como não olhar para isso. Na minha opinião, o crescimento do mercado de video on demand ajuda o mercado brasileiro. Quanto mais filmes e séries as pessoas assistem, mais cultura disso elas criam. Muita gente fala: “Ah, mas agora as pessoas não vão ao cinema”. Talvez elas estejam indo mais ao cinema VIP, ao cinema como experiência. Mas acho que, quanto mais cultura de audiovisual as pessoas tiverem, maior será a bilheteria. Não vejo o VOD como o grande vilão do cinema. Acho que é uma evolução orgânica. A tecnologia exige novas ferramentas de exploração de conteúdo.

O streaming seria uma janela para o filme nacional, com a dificuldade de ocupar as salas?
São mais janelas de escape. Talvez seja preciso que a primeira tela não seja necessariamente o cinema – você pode ir direto para a web ou para um plataforma de streaming. Acho que muitos filmes não precisam ir para a rede comercial de cinema, não têm esse propósito. Alguns rodam vários festivais e podem ir direto para a TV. Entre os filmes da Escarlate, pensamos que alguns têm de ir para o maior número de salas possível, porque têm potencial de lucro com isso. E alguns filmes, não: têm orçamento tímido, e quanto mais pessoas assistirem, melhor – seja no celular, na televisão ou no computador.

Suzana Pires em cena da peça “De Perto Ela Não É Normal” / Foto: R2 Fotografia

Vocês assinaram um contrato de três filmes com a Suzana Pires. São sequências previstas para o próprio De Perto Ela Não É Normal ou tratam-se de outros projetos?
São três filmes escritos por ela, que não precisam ser continuações necessariamente, mas podem ser. Nossa obrigação é que o conteúdo seja apresentado pela Suzana, que ela tenha parte no desenvolvimento do conteúdo. É um contrato que pensa na Suzana não só como atriz, mas também como autora.

Então vocês veem um grande potencial para ela no cinema.
Sim, é uma boa aposta. O De Perto é o primeiro [filme da parceria], baseado em uma peça dela que está em cartaz há dez anos e já levou mais de 500 mil espectadores para o teatro.

Que conselho você daria para as mulheres que querem ser produtoras?
Que cheguem ao mercado com tudo e sem medo. Historicamente a mulher esteve em posição desprivilegiada em todas as posições de trabalho, mas acho que vivemos o momento de quebrar esse paradigma. Se o mercado é majoritariamente masculino, isso não indica que a mulher não têm espaço, mas, sim, que ela tem de garantir seu espaço, tomar seu lugar. Não sinto retração em relação a isso. Pelo contrário: acho que o crescimento do número de produções exige a chegada de novas pessoas. Como mulher, não me vejo como “menos”. Não me vejo desprivilegiada, acho que como produtoras temos um espaço muito bom de articulação, de mobilização dos vários setores do projeto. Essa coisa de ser mulher, mãe, profissional…para mim agrega valor. Minha filosofia é a de que a mulher é diferente mesmo: ela menstrua, engravida, é mãe e tem de ter direitos específicos para demandas específicas. Agora, nunca me senti incapaz de exercer qualquer função em qualquer área, e nunca achei que deveria ganhar menos. A gente se desdobra em muitas, logo, temos de ser competentes e receber de acordo com nossa competência. Então acho que as mulheres têm de arriscar, se posicionar e ir em frente.


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema.

Foto do topo: Guto Costa

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