Heloisa Passos, de “Construindo Pontes”: “É preciso humanizar relações políticas”

Heloisa Passos é conhecida pelo trabalho na direção de fotografia de filmes como Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), Lixo Extraordinário (2010), O Que se Move (2013) e Mulher do Pai (2016). Agora, dá um novo passo na carreira, estreando na direção de longa-metragem com o documentário Construindo Pontes.

Um passo que ela considera natural após ter dirigido curtas como Viva Volta (2005) e séries como Caminhos (2012), e de ter se envolvido como produtora e sócia em muitos dos filmes nos quais trabalhou. “Foi uma das maneiras que encontrei para me tornar diretora de fotografia no Brasil”, contou, em entrevista por e-mail ao Mulher no Cinema. “Entendi rapidamente que o telefone iria demorar a tocar, então comecei a me envolver em projetos de curtas-metragens com locadoras e parceiros que poderiam me apoiar e viabilizar o filme de forma criativa e sem cobrança.”

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Em cartaz nos cinemas, Construindo Pontes foi um longo processo que teve início quando a cineasta ganhou uma coleção de filmes em Super-8 com imagens das Sete Quedas, cachoeiras que foram submersas nos anos 1980 para a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. A partir das filmagens, a diretora passou a recuperar a trajetória de seu pai, Álvaro, engenheiro que viveu o auge da carreira durante o regime militar. Em meio a projeções, mapas e fotos, os dois falam de passado e presente, assumindo posições contrárias tanto em relação ao legado da ditadura quanto à atual situação política do Brasil.

A polarização está presente ali como em várias outras famílias, seja na mesa do almoço ou no grupo do WhatsApp. “As conversas me levaram ao coração do filme que tenho hoje: o relacionamento de pai e filha”, contou a diretora. “Acredito que as pontes são construídas quando existe afeto. É preciso humanizar as relações políticas, sociais e econômicas.”

Leia os principais trechos da entrevista:

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Você já tinha feito outros trabalhos como diretora, sobretudo no curta-metragem, mas este é o seu primeiro longa. O que te motivou a tomar esse novo passo na carreira neste momento?
Quando comecei a fotografar, me tornei produtora e sócia de vários filmes. Foi uma das maneiras que encontrei para me tornar diretora de fotografia no cinema brasileiro: entendi rapidamente que o telefone iria demorar a tocar, então comecei a me envolver em projetos de curtas-metragens com locadoras e parceiros que poderiam me apoiar e viabilizar o filme de forma criativa e sem cobrança. Depois de produzir alguns curtas, dirigi o Viva Volta, pelo qual recebi [o prêmio de] melhor direção no Cine Ceará. Realizei vários outros curtas e fiz a direção geral da série Caminhos. Então Construindo Pontes é meu primeiro longa metragem como diretora, mas a direção de projetos audiovisuais existe na minha vida há muitos anos. Foi um passo natural para quem está imersa no cinema há mais de 25 anos.

Para Heloisa Passos, relacionamento de pai e filha é o “coração” de “Construindo Pontes”

Como seu pai e sua família receberam a proposta de serem filmados em Construindo Pontes?
Foi um processo longo até descobrir que o projeto se concentrava em dois personagens: eu e meu pai. Comecei um filme contemplativo, olhando e ouvindo pessoas que tinham ligações com as cachoeiras que foram submergidas. Num passo mais largo, introduzi um gravador de áudio e comecei a gravar conversas com o meu pai. O meu convite para ele e minha família realizarem o filme comigo foi aparecendo durante este processo de pesquisa e de conversas gravadas. Eles receberam de braços abertos, estavam atentos e amorosos. O desejo desta família, assim como de muitas outras, é o de estar junto. As conversas me levaram ao coração do filme que tenho hoje: o relacionamento de pai e filha.

Em muitas das discussões mostradas no filme você parece estar mais inflamada do que o seu pai, que sempre permanece calmo e em determinado momento diz: “Não se envolva emocionalmente”. Acha que é uma questão geracional? Existe um envolvimento emocional maior das gerações mais jovens em relação ao momento político?
Não acho que é exatamente geracional. Vejo algumas camadas que fazem a personagem Heloisa estar inflamada e o personagem Álvaro estar sereno. A hierarquia existente entre pai e filha é sinônimo de uma relação autoritária. A filha inventou o filme, se prepara para entrar na casa do pai sem uma equipe, constrói uma mise-en-scène no território do pai, a mesma casa na qual um dia ela morou. O pai está pronto, esperando a filha posicionar as câmeras. As fotos da família e das obras que o pai construiu são projetadas na parede da sala, a memória histórica e acima de tudo a memória afetiva se entrelaçam com o presente. Em algum momento não sei mais o que é presente ou passado. O ato fílmico, estar na casa do meu pai fazendo cinema, registrar tudo isso, construir uma narrativa e descobrir na sala da montagem que a pessoa que inventou o filme – eu – não consegue argumentar como gostaria com ele…São muitas camadas que fazem da Heloisa uma filha inflamada com o pai e amorosa com a vida e com o cinema.

Em tempos tão polarizados politicamente, como construir pontes com quem pensa diferente?
Exercitando a democracia, preponderando a importância e a necessidade de dialogar. Nasci no fim dos anos 1960, não aprendi a dialogar em casa ou na escola. Nossa democracia é recente. Fui aprender a ouvir e a ver sem preconceito na rua, no cinema. As pontes são construídas quando existe afeto. É preciso humanizar as relações políticas, sociais e econômicas.

Qual foi a reação do seu pai quando viu o filme?
Ele disse: “Este filme não deveria ser tachado como documentário: é mais do que isso, é uma história familiar. Não tem perdedor, nem ganhador. Pode mostrar para quem quiser, onde quiser, onde queiram o filme. Este filme é uma passagem.”

Documentários pessoais e que partem de histórias familiares parecem estar num momento especialmente frutífero. Na sua opinião, qual é o apelo deste gênero ou por que tem ganhado espaço?
O lugar da fala na primeira pessoa se faz necessário num mundo capitalista onde os negócios e os números tomaram um lugar tão poderoso. Precisamos falar.

Heloisa Passos durante a filmagem de “Construindo Pontes”

Você tem uma carreira longa na direção de fotografia, que é uma das áreas mais difíceis para a inserção das mulheres. Como foi sua trajetória neste sentido? Passou por muitos obstáculos?
Depois de anos trabalhando como assistente de câmera para mestres da fotografia brasileira como Edgar Moura, Andreas Heiniger, Rodolfo Sanches, Pedro Farkas, Lauro Escorel, Lúcio Kodato e Lito Mendes da Rocha, achei que seria natural começar a fotografar filmes para novos diretores. Isso aconteceu de forma muito lenta – como disse, entendi rapidamente que o telefone iria demorar para tocar. Então me tornei produtora e sócia de vários filmes que fotografei. Quando comecei, no início dos anos 1990, eram pouquíssimas assistentes de câmera, e diretora de fotografia somente a Kátia Coelho.

Percebe algum tipo de melhora no que diz respeito à presença das mulheres na direção de fotografia?
Somos várias mulheres fotografando filmes, mas ainda somos poucas no mercado de longa-metragem de ficção. Numa pesquisa de 2017, as diretoras de fotografia representavam 7% do mercado do audiovisual referente aos filmes que emitiram CPB [Certificado de Produto Brasileiro, emitido pela Ancine]. Somos minoria, mas estamos presentes nos festivais internacionais e nacionais, na Semana ABC [evento da Associação Brasileira de Cinematografia] e principalmente nos filmes experimentais e documentários. Estamos mais organizadas, temos um coletivo, o DAFB, somos mais de 120 mulheres no departamento fotográfico. O coletivo nos fortalece, existe troca de experiências e dialogo entre nós.

Que conselho você daria às mulheres que querem ser diretoras?
Não sei se consigo dar um conselho no meio do lançamento. O que posso dizer neste momento é: se façam presente – suas vozes, seus corpos, suas histórias. Assim, teremos oportunidade de descobrir um pouco de nós.

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