Flavia Castro sobre “Deslembro”: “Brasil não fez trabalho político de memória”

A diretora e roteirista Flavia Castro ficou conhecida por Diário de uma Busca (2010), documentário no qual abordou a ditadura militar por um viés pessoal: investigando as circunstâncias da morte de seu pai, o jornalista e militante Celso Castro, encontrado morto em outubro de 1984 no apartamento de um ex-oficial nazista.

Vídeo: Conheça algumas das mulheres que formaram a equipe de Deslembro
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O viés pessoal também está presente em Deslembro, seu primeiro longa de ficção, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (20). O filme conta a história de Joana (a talentosa atriz franco-brasileira Jeanne Boudier, em seu primeiro papel), adolescente que vive em Paris com a família quando a Anistia é decretada no Brasil. De volta ao país no qual nasceu, mas do qual mal se lembra, ela entra em contato com uma trágica parte de seu passado: o desaparecimento de seu pai nos porões do DOPS. 

A história de Joana não é exatamente a de Flavia, mas a diretora conhece bem o impacto que a perseguição política e o exílio podem ter sobre uma família. Por causa da ditadura, ela deixou o Brasil aos 5 anos e só voltou aos 14, após viver em cinco países e 15 casas diferentes. Deslembro parte de um desejo de trabalhar, no cinema, a questão da memória. “Durante a montagem de Diário de uma Busca, lidei com materiais muito diferentes. As versões das histórias que eu tinha às vezes não batiam entre o que meu pai tinha escrito, o que eu lembrava e o que a minha mãe dizia”, contou, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Deslembro surgiu daí e de uma sensação muito clara de que na ficção eu poderia ir mais longe nesse trabalho de memória.”

Jeanne Boudier em cena de "Deslembro", dirigido por Flavia Castro

Flavia escreveu o argumento do filme em 2009 e finalizou o roteiro em 2017, mesmo ano em que realizou as filmagens. Antes, portanto, de Jair Bolsonaro ser eleito presidente. Mas o contexto social e político brasileiro dá nova camada ao longa e coloca Joana como espécie de símbolo do próprio país: assim como ela não lembra de sua história, também o Brasil parece “deslembrar” de seu passado e caminhar novamente em direção à intolerância e ao autoritarismo. “Aqui não houve trabalho político de memória, como houve na Argentina, no Uruguai”, afirmou a cineasta. “Isso não explica o que a gente está vivendo, mas explica uma parte, que é ter jovens de 20 anos acreditando que a ditadura era melhor do que a democracia. É desesperador ver isso.”

Leia os principais trechos da entrevista com Flavia Castro:

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De que forma este filme se liga ao seu trabalho anterior, Diário de uma Busca?
Quando estava montando Diário de uma Busca, comecei a sentir a necessidade de trabalhar mais sobre a memória. Pensava na representação da memória no cinema e em como uma adolescente lembra, coisas que estavam muito ligadas ao que eu vivi ao longo da montagem. Naquele momento, eu lidava com materiais muito diferentes. As versões das histórias que eu tinha às vezes não batiam entre o que meu pai tinha escrito, o que eu lembrava e o que a minha mãe dizia. Deslembro surgiu a partir daí, e de uma sensação muito clara de que na ficção eu poderia ir mais longe nesse trabalho de memória.


“Gostaria muito que ‘Deslembro’ fosse visto pelos jovens. Pelo que vi no exterior, acho que o filme tem possibilidade de diálogo com eles. Acho que esta história ajuda a pensar o presente e o futuro.”


O filme se passa após a Anistia, mas o ano exato não é explicitado, nem fica claro pelo figurino e a cenografia. O que motivou esta decisão de não fazer uma demarcação temporal mais precisa?
Para mim isso era muito importante, pois não queria fazer um filme de época. Nunca me interessou a reconstituição histórica, os detalhes meticulosos, o ser exatamente de tal época. Queria um filme mais atemporal, de uma situação que a gente sabe que aconteceu naquela época, mas que segue acontecendo hoje, em vários países e lugares. Não é nada rígido: há coisas muito precisas, como a música por exemplo. Mas, visualmente, para mim era importante não marcar demais. Até porque, tudo o que a gente vê no filme é reflexo do que a Joana sente, do interior dela. Tudo foi pensado dessa forma: a cenografia, as cores. Por isso, tudo é muito frio quando chegamos ao Rio de Janeiro. Queria um Rio invernal e uma Paris tropical, justamente porque, para mim, tudo o que a gente vê é o que a Joana está sentindo e pensando.

O filme tem muitas mulheres na equipe, como Heloisa Passos (direção de fotografia), Ana Paula Cardoso (direção de arte) e Valéria Ferro (som direto). Foi algo pensado a priori ou apenas aconteceu de você escolher as pessoas com quem queria trabalhar e elas serem mulheres?
As escolhas foram pela sensibilidade artística, pelas afinidades. Não houve decisão anterior: encontrei homens, encontrei mulheres, e esta foi a equipe que se formou. Foi realmente muito bom ter essa troca com essas mulheres. Não imaginava que poderia ser tão…colaborativo, mas não só isso. É como se fosse possível fazer cinema levando o nosso jeito de ser para o set. Me senti muito bem com elas, foi muito suave e muito bacana. 


“Foi realmente muito bom ter essa troca com [a equipe formada por] mulheres. É como se fosse possível fazer cinema levando o nosso jeito de ser para o set. Me senti muito bem com elas, foi muito suave e muito bacana.”


Muitas das suas colaboradoras disseram que o seu roteiro já traz muitas informações relativas ao som e à imagem. Como é esse processo de escrita para você?
Eu escrevo vendo. O roteiro já vem com o tom, o clima do filme e o som, que é fundamental. Acho que se escreve pouco sobre som nos roteiros e, nesse caso, ele tem um papel muito importante em relação à memória. Então já escrevo várias coisas, mas aí vem a etapa seguinte, que é o encontro. Entram as subjetividades delas – da Ana Paula, da Valéria, da Helô – e dessa troca surge o filme. É uma troca muito rica, porque o que está no roteiro se torna algo vivo e muito mais interessante do que aquilo que eu tinha imaginado sozinha. 

Imagino que, quando escreveu o filme, você não tinha ideia de que ele chegaria aos cinemas no contexto em que vivemos: com Jair Bolsonaro na presidência, este avanço do conservadorismo e a constante sensação de democracia ameaçada. Assistir ao filme me fez pensar que a incapacidade do país em lidar com a própria memória talvez explique um pouco como chegamos a esta situação. Como você vê o momento do lançamento?
Concordo muito contigo. O filme tem a história pessoal de uma menina, mas tem outra leitura, que é o “deslembro” do país, ou seja, a falta de memória do país em relação à sua história. Esta é uma questão política muito importante. Aqui não houve trabalho político de memória como houve na Argentina, no Uruguai. Na Argentina, é impossível mesmo para uma pessoa de direita negar que houve ditadura militar ou dizer que ela foi boa. Ninguém fala isso, nem o mais reacionário. Aqui isso existe, e existe porque, de alguma forma, as interpretações da Lei da Anistia e a maneira como fizemos a transição democrática foi muito ambígua e complicada. Fizeram-se alianças que acho que não era possível se fazer, e agora estamos pagando caro por isso. Isso não explica o que a gente está vivendo, mas explica uma parte, que é ter jovens de 20 anos acreditando que a ditadura era melhor do que a democracia. É desesperador ver isso. Escrevendo o filme, já tinha consciência disso, já me incomodava a questão de como a memória era tratada institucionalmente, pelo Estado, pelo governo. Mas jamais imaginaria que a gente fosse chegar ao ponto que chegamos com a eleição do Bolsonaro.


“O filme estreou em Veneza um pouquinho antes da eleição. Já tinha agente do Dops na rua e pessoas tirando selfie com torturador. Já tinha o Bolsonaro fazendo discurso e dedicando o voto dele pelo impeachment ao Ustra. Já tinham acontecido essas aberrações. Ele [Bolsonaro] tinha de ter sido preso ali. Ter deixado isso passar em um governo democrático é inaceitável: o Ustra foi condenado pelo que fez.”


No pós-eleição, o filme torna-se ainda mais atual.
O filme estreou em Veneza um pouquinho antes da eleição [em agosto de 2018]. Já tinha agente do Dops na rua e pessoas tirando selfie com torturador. Já tinha o Bolsonaro fazendo discurso e dedicando o voto dele pelo impeachment ao Ustra [o coronel do Exército brasileiro Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI e condenado pela Justiça brasileira por tortura durante a ditadura]. Já tinham acontecido essas aberrações. Ele [Bolsonaro] tinha de ter sido preso ali. Ter deixado isso passar em um governo democrático é inaceitável: o Ustra foi condenado pelo que fez. Quando o filme passou na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, entre os dois turnos da eleição e em meio a uma gigante manifestação [pró-Bolsonaro] na Paulista, foi uma catarse. O filme chegou em um momento que já quer dizer outra coisa. É muito perturbador, mas ao mesmo tempo é forte. Espero que provoque reflexões sobre a nossa relação com a memória e sobre a nossa responsabilidade em trabalhar isso. Gostaria muito que o filme fosse visto por jovens. Pelo que vi no exterior, acho que tem possibilidade de diálogo com eles. Acho que esta história ajuda a pensar o presente e o futuro. 

Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
Tenho 53 anos e ainda estou aprendendo a não ficar me desculpando. A não dizer, quando começo um debate, por exemplo, algo como “estou tímida” ou “não sei falar”. Sabe as coisas que você diz para se proteger? Parece meio bobo, mas estou fazendo este esforço de não me desculpar mais. A voz treme no início, mas depois a gente recupera. Então uma das coisas que falaria para as mulheres é que se desculpem menos. Diria para serem elas mesmas, irem em frente com suas ideias e não estarem sempre se desculpando por ser, por existir, por fazer. 


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Mario Miranda Filho/agenciafoto.com.br

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