Ellen Tejle, a sueca que colocou o teste de Bechdel-Wallace nos cinemas

“Tira uma foto pra mim?” Ouvi essa frase mais vezes do que pude contar na última quinta-feira (30), logo após o Seminário Internacional Mulheres no Audiovisual, realizado pela Ancine no Rio de Janeiro. Naquele momento, eu tentava encontrar um lugar mais reservado para conversar com a sueca Ellen Tejle, que cerca de meia hora antes falara animadamente sobre a representação feminina nas telas. A palestra claramente agradou: no curto caminho entre o auditório e o jardim da Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, Ellen e eu mal conseguíamos dar três passos sem ter de parar para uma foto.

Não se trata de uma atriz ou cineasta famosa: Ellen é diretora de uma sala de cinema em Estocolmo e ficou conhecida mundialmente por uma ideia simples e eficaz. Em 2013, ela passou a usar um selo para marcar, entre os filmes em cartaz, aqueles que passavam no teste de Bechdel-Wallace – ou seja, tinham ao menos duas mulheres conversando entre si sobre algo que não seja um homem. Ellen colou adesivos nos pôsteres, inseriu uma vinheta nos trailers e divulgou o material na internet para qualquer exibidor  que quisesse abraçar a ideia.

Cerca de quatro anos depois, o selo está em mais de dez países, e o Brasil é o próximo. Nesta quarta-feira (5), Tejle estará em São Paulo para o Seminário Internacional Mulheres em Foco no Audiovisual, realizado pelo Grupo Mulheres do Audiovisual Brasil, o Coletivo Vermelha e a Casa Redonda Plataformas Criativas, com o patrocínio da Avon. A expectativa é que, durante o evento, sejam anunciadas parcerias e estratégias para a implementação do selo no Brasil.

“Há uma energia muito boa em relação a esse tema por aqui”, disse Ellen ao Mulher no Cinema, quando a entrevista finalmente começou. A seguir, ela fala sobre o impacto de sua iniciativa, comenta o contexto social sueco e aponta importantes questões sobre a representação feminina nas telas das quais o teste de Bechdel-Wallace nem sempre dá conta.

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A Suécia lidera a luta por igualdade de gênero no cinema, foi pioneira em iniciativas importantes e tem os melhores índices de mulheres por trás das câmeras. Visto daqui, parece o melhor dos mundos. É assim mesmo? Todos os filmes suecos passam no teste de Bechdel-Wallace?
[Risos] Na verdade, acho que em geral a Suécia tem dado menos valor do que deveria para a democracia e os direitos humanos. Estamos tendo dificuldade nessas questões. A democracia, por exemplo, deve ser valorizada todos os dias. Estamos sofrendo com partidos racistas e violência nos subúrbios. O que faço com o teste é colocar o foco na representação feminina no cinema, algo importante até na Suécia. No começo me diziam: “Por que você está fazendo isso aqui? Não precisamos disso”. Mas quando [os realizadores] começaram a olhar para seus próprios roteiros e filmes, descobriram que não passavam [no teste]. Então até na Suécia precisamos desse tipo de discussão e deste tipo de ferramenta para progredirmos no que diz respeito à igualdade de gênero, à democracia e aos direitos humanos.

O selo criado por Ellen Tejle
O selo criado por Ellen Tejle

O que mudou desde que você criou a campanha, em 2013?
A indústria cinematográfica sueca está bem mais consciente. [Os profissionais] de fato olham para seus roteiros e trocam o sexo do personagem. Por que 99% dos papéis são masculinos? Talvez o filme fique melhor se isso mudar! Então [os realizadores] estão realmente trocando sexo e também a origem étnica de seus personagens. Os lançamentos, hoje, têm diversidade muito maior. E esse era meu objetivo: criei a campanha para espalhar consciência.

O público também está mais consciente? Os espectadores de fato procuram ver os filmes que receberam o selo?
Sim. Na Suécia, chamamos o selo de A-marked [marcado com a letra A, em tradução livre], que acabou se tornando uma expressão sueca para se referir ao jornal, à televisão, às pessoas. Por exemplo: aquele jantar que tivemos ontem, foi A-marked? O livro que estou lendo é A-marked? A mesa de debates foi A-marked ou eram apenas homens discutindo? Conheço até crianças que dizem aos seus pais: “Não quero ver [determinado filme] porque não é A-marked”. O impacto foi muito grande.

Passar no teste de Bechdel-Wallace não garante que o filme seja feminista ou mesmo que tenha representação feminina de qualidade. É, de certa forma, apenas um primeiro filtro. Nesse sentido, qual seria o passo seguinte?
Você pode adicionar [questionamentos como] se a protagonista é mulher, se há mulheres na direção, no roteiro, na produção. São coisas objetivas: qualquer um pode procurar saber se o diretor é homem ou mulher. O próximo passo seria falar sobre gênero e raça, que é bem mais complicado. Nós também começamos a falar sobre filmes dirigidos por homens que fazem uma sexualização ruim da mulher. Ou seja: você, enquanto assiste, está do lado do homem, torce por ele, quer que seja violento com a mulher, não sente empatia por ela. E também [é preciso] medir a violência contra a mulher. Acho que é melhor fazê-lo do que não fazê-lo, mas também acho difícil fazer esse julgamento. É sexualização de fato? O que é um filme racista? [Nesses casos] não é só dizer sim ou não. Mas precisamos abordar essas questões de alguma forma.

Em sua palestra você citou o impacto social do programa Commander in Chief, no qual Geena Davis interpretava a presidente dos Estados Unidos. No caso, ela era uma boa presidente. Mas seria negativo se um programa de TV mostrasse uma presidente mulher e corrupta? Se os homens podem interpretar qualquer tipo de personagem, não é limitador querer que toda personagem feminina seja inspiradora, forte, feminista, perfeita?
É terrível que as mulheres não tenham permissão para serem vulneráveis, cometerem erros, serem fortes e depois fracas, serem grossas ou qualquer outra coisa. Elas sempre têm de ser perfeitas, quando não são perfeitas [na vida real]. No entanto, quando se trata de um homem, do herói, ele pode ter um comportamento nojento em relação à mulher: pode estuprá-la e agredi-la, e no final do filme ela estará ali para beijá-lo e perdoá-lo. O homem pode fazer o que quiser. Isso também manda uma mensagem ao mundo, às mulheres e aos homens, sobre que tipo de comportamento é aceitável.

O que você pode contar sobre a implementação do selo A no Brasil?
A iniciativa é da Débora [Ivanov, diretora da Ancine] e, na verdade, não sei bem como ele será usado. Mas sei que vários cinemas do Brasil estão interessados, o que é incrível.

Qual a sensação de ver uma iniciativa criada por você, no cinema da sua cidade, chegar a tantos lugares do mundo?
É de tirar o fôlego! Nem sei o que dizer, me sinto chocada porque apenas tive uma ideia no meu pequeno cinema em Estocolmo. E de repente se tornou algo mundial. É incrível.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema

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