Tatiana Lohmann e Roberta Estrela D’Alva lançam luz sobre o slam e o Brasil

No momento em que montavam o trailer de Slam: Voz de Levante, documentário já em cartaz nos cinemas, as diretoras Roberta Estrela D’Alva e Tatiana Lohmann consideraram a possibilidade de serem alvos de ataques nas redes sociais. Uma breve passagem pela página do filme do Facebook mostra que elas estavam certas: entre os 2,8 mil comentários postados no vídeo, publicado em 18 de outubro, há uma enorme quantidade de palavras ofensivas e violentas. 

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Mas o que motivaria ataques em se tratando de um documentário sobre slam, batalhas performáticas de poesia que surgiram nos Estados Unidos na década de 1980 e alcançaram grande popularidade no Brasil nos últimos anos? O trailer, assim como o filme, chegou ao público no contexto das eleições e da intensificação do discurso ofensivo na internet – contra mulheres, negros, homossexuais, artistas. E se as experiências e questões destes grupos norteiam grande parte dos poemas expostos nas competições, o documentário não demora a extrapolar a proposta de narrar a trajetória do slam.

“Na montagem, entendemos que estávamos falando sobre muito mais”, contou Tatiana. “Estávamos falando sobre liberdade de expressão, sobre encontro, sobre vozes que precisam ser ouvidas, sobre poesia, sobre formação de comunidade”, completou.

Tatiana conheceu o slam por causa de Roberta, responsável por trazer as batalhas para o Brasil em 2008, junto ao Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, grupo de teatro e hip hop. No início, elas pensaram em fazer um programa de TV (o que segue nos planos). Mas as filmagens começaram em 2011, antes de haver definição de formato ou financiamento, quando Roberta representou o Brasil no campeonato mundial de slam em Paris. Tatiana decidiu acompanhá-la, e o material captado tornou-se a gênese do filme.

Em idas e vindas no tempo, o documentário chega a 2017, quando outra poeta brasileira, Luz Ribeiro, vai à capital francesa em busca do título mundial. Tendo Roberta como guia e entrevistadora, Slam: Voz de Levante mostra o rápido e intenso crescimento da cena nacional e destaca sua principal particularidade: o modo como se encontrou nas ruas, e não nos espaços fechados que costumam abrigar as competições em outros países. “É a retomada do espaço público”, afirmou Roberta. “Isso é sucesso num país em que, nas cidades grandes, não há muitas opções de lazer gratuitas.”

Mulher no Cinema conversou com as duas diretoras por telefone, em entrevistas individuais nas quais falaram sobre o slam, o filme e o momento do lançamento. Leia os principais trechos:

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O slam chegou ao Brasil com a Roberta. Mas como a Roberta chegou ao slam?

Roberta Estrela D’Alva: Eu fazia parte do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e da Frente 3 de Fevereiro, grupo que tratava de questões relacionadas ao racismo no Brasil. Queríamos fazer um espetáculo na abertura do Videobrasil que era parecido com o que eu fazia, meio atriz e MC, mas não exatamente. Em 2005 me mostraram Slam (1998, de Marc Levin) e SlamNation (1998, de Paul Devlin), e fiquei louca. Em 2007 fui para os Estados Unidos, fiquei dois meses fazendo pesquisa para espetáculos que estava dirigindo, e fui a um slam pela primeira vez. Fiquei maluca com a diversidade: era a cara do Bartolomeu e de São Paulo. Procurei saber se existia no Brasil e não existia. Então propus ao núcleo.

Por que o slam deu tão certo no Brasil?

Roberta: Nos outros lugares do mundo, os slams costumam ser indoor – em clubes, teatros. Aqui, a grande maioria é na rua. Acho que dos 150 slams que temos no Brasil hoje, apenas uns cinco são em lugares fechados. Então é a retomada do espaço público. Isso é sucesso num país em que, nas cidades grandes, não há muitas opções de lazer gratuitas. Outro fator é a nossa própria tradição oral. O Brasil é um país no qual a oralidade é muito forte e muito presente, mais do que num lugar como a França, por exemplo, em que a escrita tem um lugar muito mais nobre.

Há um momento do filme em que você parece preocupada em defender a diversidade do slam, dizendo que embora as temáticas sociais sejam urgentes e compreensivelmente frequentes, um poeta não deveria se sentir impedido de falar sobre amor, por exemplo. Estes poemas sobre temas menos urgentes são vistos como “menores” de alguma forma?

Roberta: Não são visto como menores, mas é uma competição com notas. Claro que as coisas mais urgentes, mais no calor das discussões em andamento, têm maior adesão do público. Mas no último campeonato em São Paulo, senti que voltou um pouco a diferença. E é uma diferença que não é só temática, mas também estética: uma pessoa que fale mais baixo, que tenha outro tipo de métrica. Por ter trazido o slam para cá, fico guardando a diversidade. Ou não bem guardando a diversidade, mas não quero que ninguém se sinta inibido em ser quem é.

Roberta Estrela D’Alva e Luz Ribeiro em cena de “Slam: Voz de Levante”

Vocês reuniram 350 horas de material. Como foi o trabalho de montagem?

Tatiana Lohmann: Num primeiro momento tentamos uma abordagem cronológica, mas não estávamos conseguindo chegar em um corte realmente interessante. A gente sentia que precisava de um olhar totalmente de fora e fizemos uma consultoria com o Miguel Machalski, roteirista argentino radicado na Europa. Estávamos montando o filme cronologicamente porque entendíamos que estávamos contando a trajetória do slam no Brasil. E ele falou: “Não é disso que vocês estão falando”. Aí a gente entendeu que estávamos falando sobre muito mais: sobre liberdade de expressão, encontros, vozes que precisam ser ouvidas, poesia, formação de comunidades. Ele sugeriu que pensássemos em temas. Por isso agora o filme fica indo e vindo no tempo, porque está estruturado por eixos temáticos.

O corte que chega às telas agora é 16 minutos mais curto do que o que circulou em festivais pelo país desde o ano passado. Por que fizeram esta nova edição?

Tatiana: Mesmo com a consultoria, é um filme em que nós, as diretoras e roteiristas, estamos muito dentro da história sempre. Quando você trabalha assim, precisa de olhares externos, porque não tem distanciamento para perceber certas coisas. Montamos o primeiro corte para entrar no Festival do Rio [do ano passado], e desde aquela época algumas pessoas tinham comentado que estava longo. No FIM [Festival Internacional de Mulheres no Cinema, realizado em julho] ouvimos novamente que era preciso cortar. E como ganhamos o prêmio [de melhor filme, escolhido pelo público], usamos o dinheiro para isso. Foi preciso voltar para a ilha de edição, abrir o filme de novo e passar pela finalização e pelo DCP de novo. Mas agora achamos que foi a melhor coisa que poderíamos ter feito.

Um dos poemas retratados no filme contém o verso “enquanto existirem Bolsonaros”. Agora, Jair Bolsonaro não apenas existe como é o presidente eleito do país. Como veem o momento do lançamento do filme nos cinemas?

Tatiana: Como absolutamente sincrônico. Por uma série de razões, o lançamento foi sendo adiado. A eleição redimensionou muitas falas – esta é uma delas, mas [vale para] o filme inteiro. Há um outro momento em que a [poeta americana] Mahogany Browne defende a importância dos artistas. É uma frase que sempre esteve ali, porque a mensagem dela é essa. Mas no Brasil, agora, fica redimensionado.

Roberta: O slam sempre foi isso, sempre foram essas ágoras. Mas ele está em relação a alguma coisa, e o contexto histórico que se desenhou amplificou [as falas do filme]. Quando assistimos depois da eleição, as palavras pareciam diferentes. Mas não estão. O nosso tempo está diferente, o contexto faz a nossa percepção daquilo se modificar. Então foi bem forte.

Luz Ribeiro em cena de “Slam: Voz de Levante”

Em outra cena, Luz Ribeiro diz que o slam a ajudou a ser “menos invisível”. É um relato comum entre as poetas mulheres, sobretudo negras?

Roberta: Sim, muito. A Luz organiza o Slam das Minas, criado no Distrito Federal justamente com esse intuito. Ele até foi questionado, porque era feito por e para mulheres, homens não entravam. Uma das organizadoras, a Tatiana Nascimento, dizia: “Preciso ter um ambiente seguro, no qual a mulher fique a vontade para vir aqui e falar”. Acho que o fortalecimento dos slams feitos por e para mulheres possibilitaram que a gente tenha a presença mais fortalecida de mulheres nos slams mistos. Elas chegaram fortalecidas depois de poderem experimentar, acertar, errar e testar nesses ambientes acolhedores. Hoje, são quase a maioria das participantes e são respeitadas e admiradas pelos meninos.

A frase dela também poderia se aplicar ao cinema, onde as mulheres negras ainda enfrentam obstáculos para contarem suas próprias histórias. Que medidas poderiam ser tomadas para melhorar a participação da mulher negra no cinema brasileiro?

Tatiana: Isso vinha acontecendo, resta saber o que vai ser de nós a partir de 1º de janeiro. Dentro da Ancine [Agência Nacional do Cinema], a questão da equidade de gênero e de cor estava sendo colocada no júri de editais e dentro dos editais também. A gente estava avançando nesse sentido, resta saber se isso vai permanecer. Este ano, por exemplo, a gente teve Café com Canela [filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa], um olhar completamente de dentro sobre um universo de pessoas negras e periféricas. Ele traz outras subjetividades em relação ao olhar da classe média ou alta, que foi quem na maioria das vezes fez filmes sobre essas comunidades – um olhar quase sempre da violência, da miséria. Aqui é outro olhar, trazendo outras questões: afetividade, dor da perda, o tipo de conexão entre as pessoas. Acho o filme um marco emocionante, saí da sala falando: “Nossa, o cinema nacional vai mudar muito nos próximos anos.” Mas ainda estava na esperança de que a gente não ia viver essa catástrofe das eleições. Então vamos ver.

Que conselhos vocês dariam às mulheres que querem trabalhar no cinema?

Roberta: Aprendi que é preciso fazer: se meta a fazer. Não fiz escola de cinema, sou da escola do teatro. Mas tem coisa que você aprende na experiência – e até a sua linguagem se molda por causa da sua experiência. O que eu diria é: cole em quem você admira. Editei muito com a Tatiana e aprendi muito sobre montagem observando o trabalho dela, que é uma grande montadora. Então o conselho é ir fazendo, se arriscando, testando. E não esperar estar pronta para fazer. Mas tenha um propósito. Por que você está fazendo? Sua arte está a serviço do quê? De quê? Para quê?

Tatiana: Meu conselho é que escolham as funções que querem desempenhar para além daquelas que eram tradicionalmente consideradas como funções femininas, mais ligadas à produção, direção de arte, figurino, maquiagem, às vezes montagem. Façam aquilo que desejam fazer, porque a despeito da onda conservadora que está acontecendo no mundo inteiro, o fato é que esse ajuste das mulheres ocuparem o lugar que lhes é de direito não tem volta. Isso já está em movimento.


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

Foto do topo: Renato Nascimento

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