Cristiane Oliveira fala sobre filmagens e equipe feminina de “Mulher do Pai”

O fato de Cristiane Oliveira ter recebido o prêmio de direção no Festival do Rio pelo primeiro longa-metragem da carreira pode sugerir um sucesso repentino. Mas a cineasta gaúcha percorreu um bom caminho até ali: dirigiu três curtas, foi assistente de direção, trabalhou como produtora e co-escreveu dois longas.

Com a lição de casa feita, ela agora vive a experiência de lançar o premiado drama Mulher do Pai nos cinemas. O filme, que estreia nesta quinta-feira (22), é uma coprodução Brasil-Uruguai que conta a história da adolescente Nalu (Maria Galant), habitante de uma pequena vila do Rio Grande do Sul, próxima à fronteira uruguaia. Ela vive com o pai cego, Rubem (Marat Descartes), e a avó, que criou os dois quase como irmãos. Com a morte da matriarca, é Nalu quem tem de cuidar do pai e tentar construir uma intimidade até então inexistente.

“Conviver também é perceber os espaços do outro, e o filme vai muito no sentido de eles definirem esses espaços: qual o limite, qual a fronteira, o que é ser pai e o que é ser filha”, explicou a diretora, em entrevista ao Mulher no Cinema.

A terceira protagonista do filme é a Vila de São Sebastião, localizada a cerca de seis horas de Porto Alegre. Para filmar na isolada cidade, a equipe de Cristiane contou com a ajuda dos municípios vizinhos (Dom Pedrito, Bagé e Lavras do Sul) e da própria comunidade, que hospedou os profissionais e trabalhou na produção.

Na entrevista a seguir, Cristiane fala sobre os bastidores das filmagens, os desafios do primeiro longa e sobre como formou uma equipe cheia de mulheres. “Foi uma reunião de talentos”, disse. “Mas o talento precisa de espaço para se mostrar.”

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Como surgiu o projeto e por que você quis contar essa história?
Mulher do Pai surgiu a partir do meu primeiro curta-metragem, Messalina (2004), que tinha uma jovem cega como personagem. Me envolvi muito com jovens deficientes visuais e conheci a angústia de se perder a memória visual. Todos nós esquecemos da imagem das coisas, mas quem perde a visão não tem a chance de voltar a ver, nem que seja numa foto ou vídeo. Isto se conectou a uma vontade que eu tinha de trabalhar a relação de pai e filha, estimulada também por uma reaproximação que eu tive com o meu pai, aos 16 anos. Percebi que a relação que um cego estabelece com a pessoa que descreve o mundo para ele é de muita confiança e proximidade, tal qual uma filha gostaria de ter com o pai. Então imaginei: e se fosse uma filha a descrever o mundo para um pai cego? Daí surgiu o roteiro.

O filme também aborda o despertar sexual de uma menina, um tema que é bem menos explorado no cinema do que no caso dos meninos. Como você trabalhou essa questão?
Este ano o filme participou da mostra Generation do Festival de Berlim, e foi curioso perceber como a sexualidade é muito mais trabalhada lá fora do que aqui no Brasil. Acho que ainda estamos vencendo algumas barreiras conservadoras para poder falar abertamente sobre isso. Minha intenção foi trabalhar de uma forma a naturalizar esse processo, que também tem a ver com a visão dessa menina, cuja realidade é muito particular. [No local onde ela mora] não há muita opção de diversão, de acesso à cultura ou ao entretenimento, o cotidiano é se relacionar com as pessoas da vila e os amigos da idade dela. Então o despertar [sexual] é natural e vivido ali, nas ruas da vila. O trabalho [desse tema] no roteiro também vem muito de colocar duas personagens que são criadas quase como irmãos. O pai perde a visão e em seguida engravida uma ajudante da mãe, o que faz com que ele cresça dentro de uma nova realidade, ao mesmo tempo em que a filha também cresce como menina. E a avó trata os dois quase como irmãos. Então existe uma relação meio ambígua entre eles, que faz com que o despertar sexual dela mexa com ele de uma forma muito confusa, fazendo com que se reconecte a uma vitalidade que estava esquecida. Conviver é também perceber os espaços do outro, e o filme vai muito no sentido de eles definirem esses espaços: qual o limite, qual a fronteira, o que é ser pai e o que é ser filha.

Imagem do filme "Mulher do Pai", de Cristiane Oliveira
Imagem do filme “Mulher do Pai”, de Cristiane Oliveira

Como você escolheu São Sebastião como cenário? É verdade que moradores hospedaram a equipe?
A vila tem cerca de 200 habitantes e é isolada mesmo: fica a seis horas de Porto Alegre e a uma hora das cidades mais próximas. É também uma de tantas cidades brasileiras que entraram em decadência depois que os trens de passageiros deixaram de passar por elas. Praticamente só temos trem de carga no Brasil, o que faz com que muitas populações vivam essa condição de isolamento, reforçada pelo foco no carro como meio de locomoção. Se a estrada de terra vira argila quando chove, fica impossível transitar. Escolhemos a vila não só por causa dessa paisagem, que queríamos para o filme, mas também porque fomos muito bem acolhidos pelas pessoas. Como não havia farmácia, hotel e uma série de outras condições, foi muito por causa do acolhimento da comunidade que pudemos montar a produção ali. E também por causa do apoio das prefeituras da região, pois tivemos, por exemplo, que consertar estradas para poder rodar.

Vocês contrataram mulheres da região para trabalhar nas filmagens. Que tipo de funções elas desempenharam?
Muitas mulheres e homens trabalharam no filme, e algumas [das mulheres] tiveram seu primeiro trabalho remunerado. As funções foram desde figurante até consultora. Uma professora, por exemplo, deu consultoria para a atriz que interpreta a professora [a uruguaia Verónica Perrotta]. Outra moradora deu consultoria de tecelagem, houve quem trabalhasse como ajudante de set, cozinheira, lavadeira, arrumadeira. Foi muito legal, uma convivência muito boa.

Parte da equipe feminina no set de "Mulher do Pai"
Parte da equipe feminina no set de “Mulher do Pai”

A equipe do filme também tem muitas mulheres. Foi proposital ou apenas aconteceu?
Não foi pensado, foi uma reunião de talentos mesmo, de pessoas com as quais queria trabalhar. A Aletéia Selonk é uma produtora com quem já trabalhara antes, no meu segundo curta-metragem. A [diretora de fotografia] Heloísa Passos [foi escolhida porque] gostei muito do trabalho dela em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), e achei que tinha uma textura, um olhar que tinha a ver com o que eu queria fazer. Comecei a conversar com ela em 2012 e fomos desenvolvendo uma proximidade, trocando figurinhas e criando, juntas, a estética do filme. A Miriam Biderman é parceira de longa data e assina a supervisão de som. E a Adriana Borba é a diretora de arte. O uruguaio Gonzalo Delgado seria o diretor de arte, mas por um problema particular não pôde acompanhar a filmagem. Então ele fez a concepção e assinou como consultoria de arte, passando o bastão para a Adriana, que tem uma vivência muito forte com o campo e já fez filmes [nesse cenário]. Então foi uma coisa que foi acontecendo, uma reunião de talentos. Mas o talento precisa de espaço para se mostrar, e fico feliz que muitas mulheres tenham encontrado espaço no filme e estejam sendo reconhecidas.

Sendo seu primeiro longa-metragem, qual o maior desafio que você enfrentou?
Quando a gente começou o projeto, em 2009, o financiamento desse tipo de cinema era muito difícil. Agora temos mecanismos na Agência Nacional de Cinema (Ancine) que facilitam a produção de diferentes cinematografias. Então criou-se, por exemplo, o edital Brasil-Uruguai, que ganhamos em 2012. Esse edital permitiu que a gente consolidasse uma coprodução com o Uruguai, e com isso ganhamos o Ibermedia, um fundo internacional para coproduções ibero-americanas. Mas só em 2013, com o Prodecine 05 [Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Brasileiro], é que conseguimos completar o orçamento. Então acho que o maior desafio foi segurar a angústia durante esse processo todo, que também foi muito positivo, pois aproveitamos para amadurecer o filme.

Qual conselho você daria para as mulheres que querem ser diretoras?
Não ter medo! [risos] Acho que muitas oportunidades vieram de eu dar um “peitaço”, mesmo sem saber se ia conseguir realizar. Por exemplo, comecei no cinema porque trabalhava com animação. Um cineasta precisava fazer uns vaga-lumes para um curta-metragem, mas meu chefe tinha uma viagem marcada e ia negar o trabalho. Eu disse que faria, mesmo sem saber como ia resolver. Aquilo abriu uma porta porque [o cliente] não tinha como me pagar, então me ofereceu um curso de roteiro que ele ia dar. Nessa oficina escrevi meu primeiro curta, [o professor] gostou da história e quis produzir, depois ganhei um edital e o filme acabou sendo premiado e exibido em mais de 20 festivais. Acho que às vezes é difícil planejar uma carreira, até [por causa do] processo histórico de conscientização da mulher. Acho que agora as novas gerações crescem com uma consciência maior de que a mulher pode ocupar qualquer espaço, mas não era assim na geração da minha avó e da minha mãe, então eu ainda cresci com essa referência. O medo é algo que trava, mas quando a gente consegue destravar, se joga mais e vai se conectando com pessoas que querem fazer. Isso é muito importante: mostrar para as pessoas que você quer fazer. E não queira começar já sendo diretora:  queira começar também em funções menores, sendo assistente de pessoas mais experientes. Daí vem uma super experiência de aprender com quem já está fazendo.

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