Claire Atherton sobre Chantal Akerman: “Ela pertence a todos os lugares”

“É”, “está”, “pertence”, “acredita”. O tempo verbal no presente é frequentemente usado pela montadora Claire Atherton para se referir à Chantal Akerman, diretora belga que morreu há três anos. A escolha já se justificaria pelo legado inegavelmente vivo deixado pela cineasta, mas ganha ainda mais sentido no caso de alguém que colaborou com ela durante cerca de três décadas e editou boa parte de seus filmes e instalações – de Letters Home (1986) a Não É um Filme Caseiro (2015).

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Atherton também esteve diretamente envolvida na concepção e na montagem de Chantal Akerman: Tempo Expandido, exposição inédita de videoinstalações da diretora que está em cartaz no Oi Futuro, no Rio de Janeiro (RJ). Responsável pela fundação que cuida da obra da cineasta, ela deu consultoria artística à curadora Evangelina Seiler no desenvolvimento de uma mostra que carrega muitas marcas de Akerman: da câmera estática à reflexão sobre o tempo, do apreço pelo cotidiano à vontade de construir a obra junto ao espectador.

Mas em se tratando de instalações, há um diferencial: “Quando editávamos filmes, colocávamos uma imagem após a outra. Quando passamos a trabalhar com instalações, começamos a colocar as imagens também ao lado uma da outra”, contou Atherton, em entrevista ao Mulher no Cinema na abertura da mostra. “Isso cria uma segunda dimensão e dá ainda mais espaço para o espectador, porque ele também tem um movimento a fazer.”

Imagem de “Maniac summer”, umas das obras que integram a exposição
“Chantal Akerman: Tempo Expandido” – Foto: Cristina Lacerda

Durante a entrevista ao Mulher no Cinema, Atherton descreveu como era colaborar com Akerman em um processo criativo sempre diferente, mas também cheio de rituais. As duas gostavam de trabalhar na edição pela manhã, falando pouco e descobrindo as imagens juntas. Enquanto a montadora permanecia nos equipamentos, a diretora saía para preparar o almoço. “Às vezes ela até levava a tábua e a faca e cortava as cenouras ao meu lado, na mesa de edição”, contou. Leia os principais trechos da entrevista com Claire Atherton:

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Como se sente mostrando o trabalho de Chantal Akerman no Brasil e em saber que há interesse pela obra dela em um lugar tão distante?
Fico sempre muito feliz e emocionada em mostrar qualquer trabalho de Chantal em qualquer lugar. Acho que ela vive no mundo. O Brasil é longe, mas ela está sempre longe e perto ao mesmo tempo. A distância é sempre importante para ela. Em Não É um Filme Caseiro ela está falando com a mãe no Skype, e a mãe pergunta porque é tão importante filmar [a conversa]. E ela diz: “Quero fazer algo sobre o fato de que não há mais distância no mundo”. Acho essa frase muito importante. Toda vez que vou a algum lugar, sinto que é um pouco o lugar dela, a casa dela. Porque ela não é alguém que pertence a um lugar particular. Ela pertence a todos os lugares, mas não acredita em pertencer a um lugar particular.

Qual a diferença entre ver uma videoinstalação de Chantal Akerman numa exposição como esta e assistir a um filme dela em casa, por exemplo?
Chantal não era contra as pessoas assistirem aos filmes dela em casa, porque sempre queria compartilhar seu trabalho. Mas esta não é a melhor maneira de descobrir a obra dela, porque em casa o comportamento é mais de consumo do que de descoberta. Você aperta um botão e as coisas vêm até você. É como se você comesse os filmes. Mas por que vir à exposição ao invés de ver Chantal no cinema? É ótimo ver os filmes dela no cinema, mas o que talvez seja mais forte na instalação é que não se trata apenas de imagens e sons que se seguem em uma linha do tempo, mas, sim, de um trabalho que também é feito de acordo com o espaço. Quando editávamos filmes, colocávamos uma imagem após a outra. Quando passamos a trabalhar com instalações, começamos a colocar as imagens também ao lado uma da outra. Isso cria uma segunda dimensão. E o desejo de Chantal sempre é o de que o espectador trabalhe com ela. Ela nunca queria saber mais do que o espectador sobre para onde o trabalho ou o filme estava indo. Ela sempre descobria enquanto fazia. E a instalação dá ainda mais espaço para o espectador, porque ele também tem um movimento a fazer.


“Chantal sempre estava comigo e sem mim ao mesmo tempo. Eu estava sempre trabalhando nos equipamentos e ela às vezes saía, ou começava a fazer o almoço ou o jantar. Às vezes ela até levava a tábua e a faca e cortava as cenouras do meu lado na mesa de edição.”


O que pode contar sobre o processo de trabalho com Chantal?
A principal coisa é que não gostávamos de decidir o que íamos fazer antes de tentar as coisas. Gostávamos muito de descobrir os filmes no processo de edição, que sempre acontecia pela manhã. Éramos bem mais receptivas pela manhã do que à noite. Editávamos durante o dia e um ou dois dias depois assistíamos novamente o que tínhamos feito e sentíamos como continuar o filme. Outra coisa importante, da qual eu gostava muito, é que ela sempre estava comigo e sem mim ao mesmo tempo. Isso significa que eu estava sempre trabalhando nos equipamentos e ela às vezes saía, ou começava a fazer o almoço ou o jantar. Às vezes ela até levava a tábua e a faca e cortava as cenouras do meu lado na mesa de edição. Estávamos sempre criando. Era diferente a cada vez, mas também tínhamos alguns rituais que sempre seguíamos, como descobrir as imagens juntas, não falar muito, editar pela manhã, não explicar muito uma para a outra o que queríamos fazer.

Em um mundo tão cheio de imagens e informação como o de hoje, o que o trabalho de Chantal Akerman, no qual o tempo é um elemento central, oferece ao espectador?
Ele nos ajuda e nos leva a pensar por nós mesmos e a encarar o mundo. Encarar o mundo começa com a capacidade de encarar a si mesmo, encarar o seu modo de estar no mundo e também questionar a si mesmo. A arte e o cinema – que é uma arte, e muita gente se esquece disso hoje – não estão aqui para explicar o mundo e explicar como você deve pensar, mas, sim, para te ajudar a pensar. E para te dar razões para acreditar e sentir que a humanidade ainda está viva. Nosso relacionamento com as imagens, mas também o que fazemos com o planeta, podem nos fazer pensar que não estamos mais vivos, que começamos a virar máquinas. Até o modo como olhamos as imagens e comemos imagens. É incrível. Há dez dias peguei o avião para vir para cá e fiquei percebendo com as pessoas são engolidas por imagens durante o voo. Em exposições, elas não olham: elas filmam e tiram fotos. E quando digo elas, não quero dizer que eu não faço isso. Luto contra, mas é um hábito. Você tira fotos das suas listas e depois tira fotos de arte. Não vive, não sente a arte, apenas tira fotos, porque pensa que assim não vai esquecer. Porém, se esquece mais. Talvez essa seja uma resposta melhor para a sua pergunta do motivo para vir [à exposição]: para sentir o trabalho com todo o seu corpo, deixar ele chegar até você e te abrir para onde o mundo está indo, para o que estamos fazendo com o mundo e com os outros. 


“A arte e o cinema – que é uma arte, e muita gente se esquece disso hoje – não estão aqui para explicar o mundo e explicar como você deve pensar, mas, sim, para te ajudar a pensar. E para te dar razões para acreditar e sentir que a humanidade ainda está viva.”


Que conselho você daria às mulheres que querem trabalhar no cinema?
O mais importante é não ter nenhum medo. Se você começa a ter medo, fecha seu pensamento e nada pode acontecer. Posso compreender que jovens artistas tenham medo. O medo, por exemplo, de que ninguém assista seu filme porque é complicado demais, longo demais ou devagar mais, como se diz hoje. Mas é importante que quem está ao lado dessas pessoas não tenha medo. Como montadoras, temos de ajudar criadores a não ter medo. Temos de ajudá-los a ser mais livres do que se estivessem sozinhos. Quando alguém começa a fazer um filme, se pergunta sobre o motivo de estar fazendo aquilo e sobre o que está querendo dizer. Todo mundo pergunta e é preciso explicar para conseguir o dinheiro. Mas ao chegar na edição, é preciso esquecer tudo isso. Se ficar fazendo perguntas, você quebra o movimento, o gesto de fazer. E não é só na edição, é na filmagem também. Vou dar um exemplo: quando Chantal estava preparando A Loucura de Almayer (2011), a assistente perguntou se ela queria um porto grande ou pequeno. Ela respondeu que queria grande. Dias depois, a assistente ligou e disse: “Tem certeza? Por que grande?” Chantal ficou muito incomodada e disse: “Não me pergunte o motivo. Quero um porto grande, e na hora que rodar e editar o filme, vou saber o motivo.” Se você fica sempre perguntando o motivo pelo qual faz as coisas, nada está vivo. Então meu conselho às pessoas que ajudam os criadores é: não faça esse tipo de pergunta, mas os ajude a ir em frente.

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Chantal Akerman: Tempo Expandido
Visitação: 27 de novembro a 27 de janeiro
Horários: terça a domingo, das 11h às 20h
Local: Oi Futuro – Rua Dois de Dezembro, 63 – Rio de Janeiro (RJ)
Entrada: franca – mais informações no site do Oi Futuro


Luísa Pécora é editora do Mulher no CinemaEla viajou ao Rio de Janeiro a convite da Oi.

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