“Assédio se consolidou como urgência”, diz diretora de “Chega de Fiu Fiu”

Em 2014 as diretoras Amanda Kamanchek Lemos e Fernanda Frazão começaram a trabalhar no documentário Chega de Fiu Fiu, desdobramento da campanha homônima lançada pela ONG feminista Think Olga. Foram quatro anos até que o filme chegasse às telas – um período em que muita coisa mudou no debate sobre o assédio e no próprio feminismo.

“O assédio se consolidou como pauta e como urgência”, afirmou Lemos, em entrevista ao Mulher no Cinema. “O filme traz este momento histórico no qual o tema cresceu e há movimentos e mulheres falando do assunto em vários espaços.”

Os crimes noticiados pela imprensa e os números revelados por estudos (86% das brasileiras já sofreram violência sexual ou assédio em locais públicos, segundo a pesquisa da ActionAid de 2016) não deixam dúvidas de que a questão central da campanha e do filme segue relevante: as cidades foram feitas para as mulheres? Chega de Fiu Fiu se inspira no mapa do assédio criado pela Think Olga e elege o espaço urbano como fio da narrativa. Acompanhando o dia a dia de três moradoras de Brasília (DF), Salvador (BA) e São Paulo (SP), o documentário mostra como iluminação precária, lugares ermos e dificuldades de mobilidade funcionam como entraves para a segurança da população feminina.

Além das entrevistas e do registro do cotidiano das personagens, as diretoras incluíram conversas com especialistas, uma roda de conversa na qual homens são confrontados sobre o assunto e imagens de episódios de assédio registradas por meio de um óculos equipado com uma microcâmera escondida. Financiado por crowdfunding e realizado por uma equipe majoritariamente feminina, o filme foi pensado como uma ferramenta educacional e a ideia é que possa chegar ao maior número possível de espectadores. Por isso, além da estreia formal em São Paulo, Brasília e Cachoeira (BA), Chega de Fiu Fiu está disponível na plataforma Taturana, podendo ser exibido gratuitamente por qualquer pessoa ou organização.

Amanda Kamanchek Lemos e Fernanda Frazão, diretoras de “Chega de Fiu Fiu”

Na entrevista a seguir, Amanda Kamanchek Lemos fala sobre a escolha das personagens e cidades, as transformações dos últimos anos e o potencial impacto do movimento contra o assédio que está pegando fogo na indústria cinematográfica.

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O filme foi rodado durante cerca de quatro anos. Como o feminismo mudou neste período?
Mudou muito, e o filme traz este momento histórico no qual o tema cresceu e há movimentos e mulheres falando do assunto em vários espaços. O tema do assédio se consolidou como pauta e como urgência. Está sendo debatido no Congresso Nacional, por juristas, em universidades, em escolas. É hoje visto como problema e questão social. Ao mesmo tempo, a mudança cultural que a gente quer ver demora muito – mas não gosto de dizer que demora muito porque ao dizer isso a gente se acomoda. E é uma urgência. Não dá para continuar tendo 50 mil casos de estupro por ano, não dá para continuar sendo o quinto país no ranking do feminicídio, não dá para todas as mulheres terem medo de sair na rua. Isso não é normal e muitas coisas podem ser feitas em termos de política pública e mudança educacional. Mas tem de começar já.

Que tipo de medidas podem ser tomadas, por exemplo?
O filme traz algumas ideias, como a questão da informação e das campanhas permanentes. A educação é ponto fundamental, ou seja, debater a questão de gênero e o enfrentamento da violência como um mecanismo de prevenção. Isso está previsto na Lei Maria da Penha e já deveria estar acontecendo nas escolas. Para que a mudança cultural ocorra é fundamental que as pessoas se conscientizem. É preciso falar sobre o assunto para que as pessoas o conheçam.

Como chegaram às três mulheres que participam do longa-metragem?
Sabíamos que as personagens seriam a parte principal da narrativa e precisávamos de pessoas que topassem fazer o projeto junto com a gente. O envolvimento seria além das entrevistas e do acompanhamento, pois elas usaram o óculos [com a câmera escondida], gravaram diários e construíram muita coisa com a gente. Fizemos muitas entrevistas até chegar às três mulheres. Queríamos que pelo menos duas fossem negras, pela representatividade do tema e pela questão de os entraves do direito à cidade serem muito maiores para as mulheres negras.

E como decidiram em quais cidades filmariam?
Brasília era fundamental não só por ser a capital, mas por ser uma cidade modernista, planejada para ser uma inclusiva, mas que é agradável para pouquíssimas pessoas. Uma das personagens mora em Gama, a 50 km, mas estudava na Universidade de Brasília e a acompanhávamos em deslocamentos que levavam até três horas. Também tínhamos muito interesse em Salvador por ser uma cidade em que a maioria da população é negra e por trazer a questão litorânea, que queríamos investigar. Nas cidades litorâneas parece haver uma maior liberdade do corpo e a praia parece um lugar democrático – mulheres gordas, magras, diferentes raças e classes sociais. Mas assim que a mulher pisa no calçadão, coloca a roupa: não é normal ou confortável fazer essa transição. São Paulo [foi escolhida] por ser uma megametrópole tão vertical, por ser o lugar onde [a equipe] tinha experiência e porque havia muitos registros no mapa do assédio.

Imagem do documentário “Chega de Fiu Fiu”

Como foi a experiência de trabalhar com o óculos com a câmera escondida? As imagens que vemos no filme foram captadas pelas três personagens ou outras pessoas participaram?
Todas usamos – as personagens e também eu e a Fernanda. Mas as pessoas que aparecem [no filme fazendo as imagens] são outras duas meninas, a Luiza Sadi e a Gabriela Loureiro. Lançamos um chamado pelo Think Olga e mandamos os óculos para todas as regiões. Depois fomos coletando as imagens que faziam mais sentido para contar a história.

Houve algum problema com o uso dessa ferramenta? Alguém chegou a notá-la?
Nunca. A única coisa é que ficávamos muito estranhas, porque era um óculos horrível, enorme, verde. Funcionou muito no sentido de captar os olhares, conversas, o que falavam, como mexiam, xingavam. Mas nos trouxe bastante desconforto, pois estávamos vivendo as violências para podermos falar das violências. Nos colocamos em um lugar bem frágil, quase que abrindo nossos corpos para a cidade e as pessoas. Foi uma experiência bem difícil.

O filme inclui cenas de uma roda de conversa nas quais os homens falam sobre o assédio. Por que tomaram a decisão de incluir os homens no filme e como chegaram a este formato?
Estudando feministas e estudiosos de gênero, sabíamos que [o assédio] era uma questão relacionada à violência de gênero. E a principal causa do assédio é a relação desigual de poder entre homens e mulheres no espaço público. Para que o filme tivesse essa complexidade de compreensão da causa e dos agentes, porque os autores são os homens, precisávamos confrontá-los minimamente. Não estamos apenas ouvindo o que eles têm a dizer. Tínhamos uma metodologia e conversamos com um professor [Rolf Malungo] que trabalha com masculinidades e faz mediações. Nossa ideia era que [a roda de conversa] fosse um espaço onde eles pudessem entender como pensavam a violência de gênero, como as mulheres veem esse problema e que pudesse gerar desconforto e um debate no qual eles aprendessem alguma coisa. Acho que foi um instrumento pedagógico, mas até o último minuto duvidamos se deveríamos colocar no filme.

Por quê?
Porque realmente não queríamos ter homens falando sobre o problema como se tivessem o mesmo peso ou como se fosse um direito de resposta. Não era isso. Mas acho que trouxe muitos insights sobre masculinidade. O filme vai passar em escolas e sabemos que também precisamos conversar com os meninos.

Imagem do filme “Chega de Fiu Fiu”

O assédio também se consolidou como um tema na indústria cinematográfica, especialmente em Hollywood, após o caso Harvey Weinstein. Isso tem algum impacto na sociedade? Ou seja, para além da própria Hollywood, o movimento destas profissionais do cinema ajuda a causa como um todo?
Tem impacto porque estamos falando de uma esfera de poder: Hollywood tem influência cultural imensa, tanto para o lado bom quanto para o ruim, na cultura dos países. Modificar a forma como as produções são feitas, os papéis que as mulheres vão interpretar, os salários que serão pagos às atrizes e roteiristas, o próprio fomento à produção audiovisual para que existam mais diretoras, tudo isso obviamente vai impactar. Eu de fato gostaria de ver mais mulheres protagonistas, com bons diálogos, que se mostrem serem complexos, pensantes, inteligentes. Neste sentido, sim, vai ser um instrumento de mudança. Mas também acho importante falar sobre a diferença entre as realidades do Brasil e de Hollywood. Há uma lacuna grande: eles já estão falando sobre salários iguais e o assédio no ambiente de trabalho; aqui ainda estamos falando de feminicídio, de assassinato de mulheres negras, de participação social, de qualidade da educação. Os movimentos ainda estão lidando com pautas bem urgentes e isso mostra a disparidade entre os países no sentido sócio-econômico. Quando Hollywood, a moda, veículos e empresas se apropriam deste tema, pode ser bom e impactar muitas mulheres. Mas temos de olhar para quais mulheres estão sendo impactadas. Se o feminismo não é interseccional, é supremacia branca.

Qual a maior lição que aprendeu fazendo seu primeiro longa-metragem?
Existe um universo entre um curta e um longa [risos] Sendo bem sincera, não tinha a menor ideia do trabalho que era fazer um longa-metragem – desde a quantidade de pessoas que se envolvem na produção, a profundidade da relação que se estabelece com as personagens, a dificuldade de fazer um filme independente e com uma equipe de mulheres jovens, que estava aprendendo ao longo do processo. Acho que a gente aprendeu tudo, na verdade [risos] E gosto da ideia de termos aprendido fazendo, porque nos permitimos criar muita coisa. Estudamos muito a linguagem cinematográfica, mas não tínhamos trabalhado com mercado, comerciais, marketing. Não tínhamos vícios de linguagem e pudemos fazer do zero.

Que conselho você daria para as mulheres que querem ser diretoras?
Ver o trabalho de outras diretoras, para que conheçam seu estilo e tenham uma ideia do que querem fazer. Acho que vale a pena trabalhar com mulheres – pensar na questão de gênero também na valorização do trabalho das mulheres. E acho que esta sensibilidade de gênero é importante para as realizadoras, para que não repitam alguns erros que os homens já cometem há tantos anos. Por fim, quebrar um pouco as hierarquias. Se você realmente acha que tem capacidade, se jogue e tente fazer.


Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema.

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