Juliana Antunes fala sobre cinema mineiro e bastidores de “Baronesa”

Em 2008, quando trocou o interior pela capital de Minas Gerais, Juliana Antunes notou algo curioso sobre o transporte público: muitas linhas de ônibus de Belo Horizonte, sobretudo as que levavam para a periferia, tinham nomes de mulheres. Esta observação foi o ponto de partida para seu primeiro longa, Baronesa, pois foi entrando nestes ônibus e colando cartazes nas áreas populares da cidade que a diretora chegou às protagonistas Andreia e Leid.

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Em cartaz nos cinemas, Baronesa mistura ficção e realidade para contar a história de amigas em meio à guerra do tráfico que abala o bairro Juliana: Andreia quer mudar ali, enquanto Leid ficará cuidando dos filhos e esperando o marido sair da prisão. Embora não houvesse roteiro, a diretora dava tópicos para as atrizes, filmava diferentes possibilidades de cena e sabia qual final queria dar à história. Ao mesmo tempo, não impedia que a vida invadisse a tela.

“Fui aceitando o que vinha, o que o projeto me dava”, contou, em entrevista ao Mulher no Cinema. “Era uma coisa de ver e rever as cenas todos os dias e falar: qual caminho este filme pode seguir amanhã?”

Para ganhar a confiança de Andreia e Leid e por questões logísticas, Antunes morou durante seis meses no próprio bairro, recebendo visitas semanais da equipe para as filmagens. O grande número de mulheres por trás das câmeras foi fruto do que a diretora definiu como “questão política”. “Tanto minhas amigas como eu estávamos de saco cheio. Não aguentava mais passar café e picar fruta em set”, afirmou.

Leia os principais trechos da entrevista:

Imagem do filme “Baronesa”, de Juliana Antunes

O filme é fruto de uma pesquisa que você fez a partir das linhas de ônibus. Fale um pouco sobre esse processo.
Em 2008, Belo Horizonte tinha um monte de ônibus com nome de mulher, principalmente os vermelhos, que levavam para a periferia. Na época fazia cursinho e aquilo me interessou, mas nunca entrei em nenhum. Durante a faculdade [ela cursou Cinema no Centro Universitário UNA], tínhamos de fazer um projeto relacionado a Cidades Invisíveis, do Ítalo Calvino. Então comecei a entrar nos ônibus com minhas amigas. Meu curso era muito misógino, só homens davam aula e nos incentivavam a ser produtoras, diretoras de arte…Tenho profundo respeito por essas profissões, mas o problema é quando elas não são do seu desejo. Aí é desrespeito. Como ninguém topava fazer a pesquisa comigo, chamei amigas que não trabalhavam com cinema: a Marcela Santos e Giselle Ferreira. Começamos uma pesquisa em mais de 35 bairros colando cartazes [em busca de mulheres que topassem atuar no longa]. Um dia colamos perto de um salão de beleza, e foi o dispositivo que funcionou.

Como chegou à Andreia e Leid?
A gente parou em um salão de beleza no bairro Juliana, o último no qual queria filmar porque tem o meu nome [risos] Mas o salão era realmente massa e um dia a Andreia entrou ali, me fitou e me ignorou. Tive a intuição [de que era a pessoa certa]. Um dia ela nos deixou filmá-la fazendo uma unha. E aí aconteceu. No caso da Leid, ela estava sempre muito próxima [da Andreia], então pedi para fazer algumas cenas e ela topou. Mudei para o bairro sozinha e a equipe passou a ir até lá duas vezes por semana, sempre por pouco tempo. Acho que fizemos apenas duas diárias de mais de oito horas.

Como foi morar no bairro? A intenção era estar disponível no momento em que elas topassem filmar?
Era para estar lá, porque não tinha como fazer cronograma de filmagem. Era um filme muito sem grana com uma equipe que estava cansada de chegar lá para não filmar. Todo mundo era estudante, estagiário, ninguém era inserido no mercado de cinema – a maioria nem tinha sequer pisado em um set. Então cruzar a cidade todo dia de ônibus para não trabalhar começa a ser um saco. Eu dirigi, escrevi, produzi, tinha de pensar roteiro, fazer sanduíche, conversar com a equipe, organizar. Era muita função, e se não estivesse lá, não conseguiria me desdobrar em 30, como consegui.

Imagem do filme “Baronesa”, de Juliana Antunes

E como funcionava a filmagem na prática? Havia um roteiro?
Existia uma ideia de filme. Já sabia o final e sempre existiu o desejo por algo mais ficcional. Nunca quis fazer um documentário de entrevistas, [diga] seu nome e seu bairro. A princípio o tema seria a juventude lésbica da periferia. Estava procurando muito por isso, mas não encontrei. Então fui aceitando o que vinha, o que o projeto me dava. Era uma coisa de ver e rever as cenas todos os dias e falar: qual caminho este filme pode seguir amanhã?

Mas você não dava texto para as atrizes.
Não, texto nunca. Eram tópicos: “Nesta cena você tem de falar que está rolando uma guerra e que você precisa mudar para o Baronesa”. Era muito conversado. Sabe como na tela está um filme [de gente] tomando cerveja? Por trás [das câmeras] também era um filme [de gente] tomando cerveja. E com muito embate, com a vida invadindo o filme.

Você estava retratando uma realidade que não é a sua. Que tipo de desafios ou ruídos isso representou?
A primeira dúvida, desde a pesquisa, era sobre se eu era polícia [risos] Foi difícil, a gente perdeu muita coisa por isso, tive que levar carta da faculdade, [mostrar o perfil no] Facebook e nada convencia. Em segundo lugar tem os caras e o tanto que eles enchem o saco das mulheres que moram lá. Eu, estando sozinha, obviamente não passei ilesa por isso, pela violência. Não quero me expor contando mais do que isso, mas certamente não passei ilesa. E [também houve o problema] de as pessoas não entenderem a dimensão do projeto, acharem que era um filme multimilionário, que todo mundo era rico.

Mas as atrizes não duvidaram da sua capacidade de entender o que elas vivem?
Não. Elas duvidavam da bobagem que é perder esse tempo para fazer um filme. O que acho uma dúvida justíssima, que eu tinha vez ou outra, porque era muita resistência. Foi um processo muito solitário: não tinha muita gente com quem eu conversava sobre isso. O cinema mineiro é super machista. Trabalho muito como assistente de direção e um dia em que estava no set, pedi para ver uma cena e ouvi do meu chefe: “Você não está no cinema para pensar”. Um outro diretor de quem fui assistente em Belo Horizonte tentou cuspir em mim numa festa. Entende? Um cara para quem eu trabalhei praticamente de graça. É muito complicado para a mulher se destacar no cinema brasileiro. Estou falando de pessoas de classe média, não é nem de periferia, porque praticamente não existem mulheres de periferia filmando no Brasil ainda. Mas em Minas Gerais, se você não é de extrema elite, hétero, branca, com um filme normativo e careta, você não sai. Minas é uma coisa maluca. Vejo uma sensibilidade maior em São Paulo, no Nordeste. Ser mulher em Minas e fazer um filme fora da caixinha, ser mulher em Minas, beber, fumar e conseguir trabalhar no cinema…você tem de meter muito o pé na porta.

Foi por isso que você reuniu uma equipe com tantas mulheres? Ou foi coincidência?
Foi questão política. Porque tanto minhas amigas como eu estávamos de saco cheio. Não aguentava mais passar café e picar fruta em set. Comecei a fazer cinema com 18 anos, hoje tenho 29. Olha o tempo que demorei para fazer um filme. E ainda não consegui acessar um edital com grana. Não filmei com dinheiro até hoje. Qualquer moleque em Belo Horizonte [consegue financiamento]. Tem caso de cara que ganha quase um milhão em edital ser ter um curta-
metragem. Adoro trabalhar nos filmes dos outros, adoro contribuir – faço com grana, faço sem grana. Mas quando vou ser respeitada? Quando vocês vão nos respeitar?

Imagem do filme “Baronesa”, dirigido por Juliana Antunes

O que as atrizes acharam quando assistiram ao filme?
Quando viram pela primeira vez, no computador? Chato, claro. Porque não é filme de ação, é só conversa, aquela coisa chata [risos] Quando viram na Mostra de Tiradentes, no cinema, o filme bateu e foi massa. Mas a priori [acharam] chato, lento, demorado, [falaram] “olha como estou esquisita, essa roupa estranha”. É a coisa de se reconhecer, uma reação normal.

Qual o maior aprendizado deste primeiro longa-metragem?
Tempo. O tempo é a melhor receita para a vida e para o cinema. Tudo é a nossa relação com o tempo.

Que conselho daria às mulheres que querem ser diretoras?
Confiar mais em desejo do que em currículo. Ver a gata do seu lado, a mana do seu lado, e saber que ela pode ser tão foda quando o estudante de cinema em quem todo mundo bota fé. Os homens começam porque botam fé neles, então bote fé na sua colega. Não se preocupe com experiência, se preocupe com desejo. E tentar fazer um filme massa, com pouca ou nenhuma grana, para subir um pouco na carreira e tentar conseguir outras coisas. Porque ficar dando tiro em edital…eu fiquei dando muito murro em ponta de faca, até hoje dou. Mas se não ganhou, faz do jeito que dá.


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

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