Uma forma de tentar definir Bruxas, documentário que estreia nesta sexta-feira (22) na MUBI, seria dizer que ele reúne três filmes em um. Trata-se, ao mesmo tempo, de um ensaio sobre a representação das bruxas no cinema e na cultura pop; de uma investigação sobre o impacto dos julgamentos de bruxaria do século 16 e 17 na sociedade contemporânea; e de uma coleção de entrevistas com mulheres que sofreram de ansiedade e depressão pós-parto – incluindo a própria diretora, Elizabeth Sankey.
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Não é pouco para um documentário de 90 minutos, o segundo longa da cineasta inglesa também conhecida como parte da dupla musical Summer Camp. “Durante a realização do filme, sempre falávamos sobre como daria para fazer uma série de televisão inteira”, disse Sankey, em conversa com jornalistas da qual o Mulher no Cinema participou. “Minha desculpa é que o filme foi feito por uma mulher louca”, acrescentou, sorrindo. “Ainda estava louca quando comecei a trabalhar nele, então não me lembro muito bem do meu processo lógico”.
O que Sankey pode dizer com certeza é que o fascínio por bruxas a acompanha desde a infância, e que a vontade de fazer um filme sobre elas também já era consideravelmente antiga. Em 2020, cerca de um mês após dar à luz um menino, a diretora foi internada junto com o bebê em um hospital psiquiátrico, no qual passou oito semanas tratando um quadro de ansiedade e depressão.
“Quando estava doente, as bruxas começaram a ecoar em mim de novo”, afirmou. “Aquela sensação de que as mulheres têm de se comportar de determinada maneira, aquela dicotomia entre bem e mal que é tão imposta a nós, aquela pressão que sentimos…A conexão com as bruxas simplesmente fez sentido.”
Sankey já tinha realizado o documentário Romantic Comedy (2019), uma análise sobre comédias românticas que reunia centenas de trechos de filmes do gênero. Decidiu retratar sua experiência pós-parto em um projeto similar, agora com foco nos filmes sobre bruxas. Por um lado, essas eram as obras que melhor ilustravam como se sentia durante a doença. Por outro, sabia como utilizar as imagens dentro das condições previstas pelo chamado fair use (que dispensa a necessidade de autorização ou pagamento de direitos autorais), o que permitia começar o projeto imediatamente, sem ter de esperar por financiamento.
Durante a montagem, que realizou sozinha, Sankey assistiu a cerca de 200 filmes, e mais da metade entrou para o corte final. Alguns são de fato centrados em magia – como As Bruxas de Eastwick (1987), Abracadabra (1993) e A Bruxa (2015) -, enquanto outros contam histórias de mulheres que passaram por hospitais psiquiátricos – como Um Anjo em Minha Mesa (1990), Garota, Interrompida (1990) e A Troca (2008).
Ao mesmo tempo, Sankey pesquisava sobre os motivos de experiências como a sua serem pouco representadas e discutidas. Ao ler confissões de mulheres julgadas como bruxas no século 16, identificou-se com as sensações descritas e reconheceu a possível origem de uma cultura de culpa, vergonha e silêncio em torno das questões femininas. “Fui atrás das conexões históricas para tentar entender o que tinha acontecido comigo, buscar ecos na minha própria história”, afirmou. “[Eu me perguntava:] Há quanto tempo isso vem acontecendo? Por que nunca soube nada sobre esse assunto? Foi meio assim que tudo se uniu.”
Conversa honesta
Sankey inclui a leitura de trechos dessas confissões no filme, bem como uma entrevista com a professora Marion Gibson, que pesquisa e escreve sobre acontecimentos históricos relacionados às bruxas. As informações e reflexões são em geral interessantes, mas não bastam para comprovar algumas das conexões propostas pelo documentário, sobretudo considerando o tempo limitado e as múltiplas questões abordadas.
Bruxas também conversa com médicas e psiquiátricas, mas seu diferencial está no relato da diretora e das outras mães (algumas delas, colegas de internação). Todas falam com honestidade impressionante sobre questões difíceis, íntimas e raramente discutidas, que envolvem tanto os estigmas em torno da maternidade quanto os em torno da saúde mental. Não me lembro, por exemplo, de outra ocasião na qual eu tenha visto um relato em primeira pessoa sobre psicose pós-parto, dado em Bruxas pela escritora Catherine Cho.
Sankey disse nunca ter sentido qualquer desconforto em contar a própria história nem receio quanto à possibilidade de compartilhar mais do que deveria. “É muito raro passar por uma emergência psiquiátrica e ter a oportunidade ou a capacidade de fazer um filme sobre ela”, afirmou a cineasta. “Queria mostrar às pessoas como é perder a cabeça e ser internada em um hospital psiquiátrico, e como é sair desse hospital também. Eu realmente acreditava no poder do meu testemunho e no que ele podia fazer pelos outros.”
A relevância dessa discussão é comprovada pelas estatísticas, ainda que faltem números atualizados no caso do Brasil. De acordo com estudo divulgado em 2016 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a depressão pós-parto atinge uma em cada quatro mulheres brasileiras. Já no Reino Unido, o mais recente relatório do Maternal, Newborn and Infant Clinical Outcome Review Programme, publicado em 2023, aponta o suicídio como principal causa de morte materna no período entre seis semanas e doze meses após o término da gravidez.
Este dado é abordado em Bruxas com o comovente depoimento de David Emson, o único homem ouvido pelo documentário. Emson era casado com Daksha, uma psiquiatra de 34 anos com histórico de doença mental que em outubro de 2000 matou a filha de três meses, Freya, e cometeu suicídio. A tragédia levou à criação de um inquérito dentro do sistema de saúde público britânico, que recomendou a ampliação dos serviços de atendimento psiquiátrico e ações para reduzir o estigma associado à saúde mental, inclusive entre médicos.
“Daksha e Freya têm um legado de partir o coração, mas que também é muito bonito, porque elas salvaram vidas”, afirmou a diretora. “Entrevistar David foi difícil, mas ele foi generoso e gentil, talvez porque sentisse que aquilo podia ajudar a conscientizar as pessoas. É um homem que…não é possível superar algo como ele viveu. Todas as outras histórias do filme são esperançosas, todas as outras pessoas se recuperaram. Mas Daksha não está ali [dando entrevista]. Ela é a única pessoa que está no filme, mas não está ali.”
Além das entrevistas e dos trechos de filmes, Bruxas também inclui cenas rodadas em um cenário criado para o longa e decorado de três formas diferentes pela diretora de arte May Davies. Numa representação das fases do tratamento de Sankey, o primeiro cenário se inspirou em fotos de hospitais psiquiátricos abandonados; o segundo, na série Sabrina: A Aprendiz de Feiticeira (1996-2003); e o terceiro, em chalés de bruxas.
“Quando fui internada, via o hospital como um lugar assustador e perturbador. Quando melhorei um pouco, comecei a levar coisas da minha casa, e meu quarto ficou parecendo o de uma adolescente. E nas cenas do chalé estou finalmente abraçando meu lado sombrio, meu lado bruxa, e me sentindo confortável com ele”, explicou a diretora. “Queria que o filme tivesse uma estética forte e que se parecesse com um livro de feitiços.”
Para a cineasta, o documentário chega ao streaming num momento propício para reflexões sobre as bruxas, especialmente depois da recente vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas.
“As bruxas podem ser usadas para controlar as mulheres, para dizer: ‘Isso é o que você não deve ser’. Ao mesmo tempo, podem ser figuras potentes e inspiradoras de mulheres que estão dizendo: ‘E se não vivêssemos numa sociedade patriarcal? E se rejeitássemos as ideias sobre o que devemos ser? E se apenas ficássemos velhas? E se não tivéssemos filhos? E se tivéssemos filhos, mas não fôssemos mães perfeitas?’”, afirmou. “As bruxas tendem a reaparecer quando precisamos delas. E acho que, neste momento, estão reaparecendo.”
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema
Foto do topo: Kristina Salgvik/Divulgação