Diário da Mostra: críticas de filmes dirigidos e estrelados por mulheres

Este espaço reúne breves críticas sobre filmes dirigidos e/ou estrelados por mulheres na programação da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo – e será atualizado regularmente até o fim do festival, em 1° de novembro.

Para mais informações e dicas do que assistir, confira a lista completa de filmes dirigidos por mulheres no line-up e saiba mais sobre os títulos que integram a homenagem à cineasta Agnès Varda.

Dias, horários e locais de exibição dos filmes em cartaz podem ser consultados no site da Mostra.


around luisa

“Ao Redor de Luisa”
[Autour de Luisa, Suíça/Bélgica, 2017]
Primeiro longa-metragem de ficção da diretora Olga Baillif, integra a Competição de Novos Diretores e o Foco Suíça, seção da Mostra especialmente dedicada à produção cinematográfica do país. Conta a história de Luisa, uma cantora de 40 anos que tem uma banda com seu companheiro, o guitarrista e compositor Julien. Ainda que não seja um estouro de vendas, o grupo tem certo reconhecimento e viaja em turnê pela Suíça e pela França, ao mesmo tempo em que prepara o novo disco. Depois de um show, o pai de Luisa, que ela não vê desde a adolescência, a procura para contar que sofre de uma doença grave. A cantora, então, começa a questionar seus relacionamentos, suas decisões e sua própria identidade artística. A sinopse não cria expectativa por um filme muito original – afinal, quantas vezes o cinema narrou histórias de autodescobrimento despertadas pelo inesperado retorno de um parente doente? No entanto, Ao Redor de Luisa é uma grata surpresa no modo profundo com que acompanha as transformações da protagonista. E como a música está no centro desta investigação, Baillif fez uma acertada opção pela autenticidade: não usou playback e escalou músicos de verdade para o papel principal, a americana Pieta Brown e o francês Bertrand Belin. Sob orientação da diretora, ela ficou responsável pelas letras e ele, pela música – uma parceria e tanto. Leia entrevista com a cineasta.


bem vindo a suica“Bem-vindo à Suíça”
[Willkommen in der Schweiz, Suíça, 2017]
O documentário da diretora Sabine Gisiger aborda um tema quente na Europa: a crise imigratória. Seu foco não são as grandes cidades, mas, sim, o vilarejo suíço de Oberwil-Lieli, que apesar de ser o mais rico da região de Aargau, se recusou a receber apenas dez dos 40 mil refugiados que entraram no país no verão de 2015. Esta pequena comunidade de 2 mil moradores se torna um microcosmo da Suíça e da sociedade europeia conforme a cineasta explora diferentes opiniões sobre a questão. De um lado, há o prefeito Andreas Glarner, membro do partido direitista Swiss People’s Party (SVP); de outro, a estudante Johanna Gündell, que organiza o IG Solidarity, um movimento pró-imigração, em resposta à recusa em abrigar os refugiados. Conforme conversa com outros moradores e também com os estrangeiros, Gigiser mostra como a complexa questão requer diálogo e planejamento, e não respostas impensadas ou demagogia.


bikini-moon“Bikini Moon”
[EUA, 2017]
Novo trabalho do diretor macedônio Milcho Manchevski, de Antes da Chuva (1994), conta a história de Bikini, uma mulher em situação de rua que cruza o caminho de uma assistente social e da equipe de documentaristas que a acompanha. Conforme Bikini vira o tema central da produção, sua história se revela: criada pela avó, ela sofreu um surto mental enquanto servia na Guerra do Iraque, não conseguiu se adaptar à volta para casa e acabou perdendo a guarda da filha. O foco de Manchevski é discutir as linhas que separam ficção e documentário, sobretudo no mundo moderno, em que as possibilidade de gravações são múltiplas. Assistimos imagens de diferentes origens: filmadas pela equipe de documentaristas, revistas durante o processo de edição, gravadas em celulares, registradas em câmeras de segurança e publicadas em um canal do YouTube. Mais interessante do que este debate, porém, é a atuação da americana Condola Rashad, que transforma Bikini em uma personagem ao mesmo tempo comovente, engraçada, forte, vulnerável e carismática. Atualmente na série Billions, a atriz tem forte presença em cena e faz mais pelo filme do que o filme faz por ela.


the good intentions“As Boas Intenções”
[The Good Intentions, Itália, 2016]
A jovem italiana Beatrice Segolini é ao mesmo tempo diretora e personagem deste ótimo documentário que integra a Competição Novos Diretores, e que foi realizado em parceria com o cineasta Maximilian Schlehuber. Após sete anos vivendo fora de casa, Beatrice reaparece disposta a fazer um filme sobre a sua própria família. Mas a ideia não é que os pais divorciados e os dois irmãos mais velhos relembrem tempos felizes do passado e, sim, confrontem um tema delicado que nunca discutiram de fato: o comportamento violento do pai. Em seu complexo duplo papel, Segolini nunca é excessivamente autocentrada e parece sempre se guiar pela ideia de que um filme extremamente pessoal também pode ser universal. Das brigas durante o jantar aos silêncios muito reveladores, As Boas Intenções faz um retrato sincero dos efeitos da violência doméstica e dos complexos relacionamentos de uma família comum. Leia entrevista com os cineastas


good manners“As Boas Maneiras”
[Brasil/França, 2017]
A nova parceria de Juliana Rojas e Marco Dutra, a dupla de Trabalhar Cansa, tem traçado uma trajetória de sucesso: ganhou o prêmio especial do júri do Festival de Locarno e foi o grande vencedor do Festival do Rio. O filme conta a história de Clara (Isabél Zuaa, em excelente atuação), uma estudante de enfermagem que consegue um novo trabalho cuidando da casa e do filho de Ana (Marjorie Estiano, também ótima), que está preste a nascer. Conforme a gestação avança, Clara nota comportamentos estranhos e decide descobrir o que há de errado. Enquanto muitos filmes de terror preferem apenas sugerir elementos sobrenaturais ou malignos, As Boas Maneiras ousa mostrar. Se sai muito bem nos efeitos visuais e no clima de tensão e suspense, apontando um bom caminho para o gênero no cinema nacional.


jerico

“Jericó, o Infinito Voo dos Dias”
[Jericó, el Infinito Vuelo de los Diás, Colômbia/França, 2017]
O documentário dirigido por Catalina Mesa faz um retrato do povoado colombiano de Jericó a partir das histórias de diferentes moradoras. O filme começou como uma experiência pessoal da diretora, cuja família mudou-se de Jericó para Medellín. Quando sua tia-avó ficou doente, ela decidiu filmá-la para preservar suas memórias do lugar. Depois, foi ao povoado para filmar encontros entre mulheres de várias idades, profissões e condições sociais, que relembram histórias de amor, perdas e separações. Além das conversas, o filme revela suas personagens por meio de suas casas e objetos, sejam rosários, imagens de santos, panelas ou livros. A forte ligação da diretora com o povoado se revela no respeito e na delicadeza com que mostra as mulheres e os ambientes em que vivem. Mas, apesar da tentativa de reunir universos variados, por vezes o filme se torna repetitivo, tanto na forma como no conteúdo.


a moca do calendario“A Moça do Calendário”
[Brasil, 2017]
O filme escrito e dirigido por Helena Ignez teve como ponto de partida um roteiro de 1987 de autoria de Rogério Sganzerla (1946-2004), com quem ela foi casada. A trama ambientada em São Paulo é centrada em Inácio, um homem de 40 anos, casado com uma mulher que parece não amar e funcionário de uma oficina mecânica chamada Barato da Pesada. No ambiente de trabalho opressivo, graças ao dono obcecado por produtividade, ele encontra algum consolo olhando para uma bela moça nas páginas de um calendário. A partir daí, real e imaginário se entrelaçam para traçar um panorama de uma série de questões sociais brasileiras, entre elas machismo, racismo, concentração de terra, sucateamento da educação, desemprego e destruição do meio ambiente. Ignez retrata o que chama de “sociedade do desempenho e do cansaço”, habitada por “depressivos e fracassados”. Mas ao contrário do que possa parecer, não se trata de um filme pessimista. O tom é cômico, a trilha sonora é animada e a mensagem, de resistência: “Não importa o resultado da luta, a paixão não esmorece.”


quem e barbara virgina“Quem É Bárbara Virgínia?”
[Portugal/Brasil, 2017]
O documentário da diretora Luísa Sequeira se insere em um crescente movimento que busca recuperar a história de mulheres pioneiras do cinema (e de outras áreas também). Conforme responde à pergunta do título, o filme também mostra o quão espantoso é o fato de o nome Bárbara Virgínia ser tão pouco conhecido entre estudiosos e espectadores de cinema. Afinal, trata-se da primeira mulher a realizar um longa-metragem sonoro em Portugal e da única a realizar um filme durante a ditadura que vigorou no país. O trabalho em questão, Três Dias Sem Deus, foi o único dirigido por mulher a competir na edição de estreia do Festival de Cannes, em 1946. Para os brasileiros, a trajetória reserva outro aspecto interessante: nos anos 1950, sem muitas oportunidades em Portugal, a cineasta mudou-se para o Brasil, onde trabalhou na TV Tupi e realizou centenas de recitais. Uma história e tanto, que merecia mesmo chegar ao público.


scary mother“Scary Mother”
[Geórgia/Estônia, 2017]
O filme da diretora Ana Urushadze chega à Mostra após receber o prêmio de melhor longa de estreia no Festival de Locarno e de ser escolhido como o candidato da Geórgia ao Oscar de filme estrangeiro. A ação é centrada em Manana (a ótima Nato Murvanidze), uma mulher casada e mãe de três filhos que encontra na literatura um respiro para a rotina doméstica. Após meses escrevendo seu próprio romance, ela finalmente o lê para a família, causando verdadeiro choque: trata-se de um thriller erótico com claros traços autobiográficos. Ofendido com as passagens pornográficas e com o que considera ser um retrato pouco simpático dele e dos filhos, o marido proíbe Manana de lançar o livro. A favor da escritora, porém, está o dono da papelaria vizinha, que se coloca na posição de editor e acredita estar diante de uma obra-prima. De certa forma, Scary Mother parece ter duas partes: a primeira é quase uma comédia de humor negro sobre uma mulher tentando se expressar em um ambiente familiar opressivo – reforçado pelos cômodos apertados, os comentários abusivos do marido e também pelo exterior do apartamento, cheio de prédios altos e mal cuidados, tão cinzas quanto o céu do inverno muito frio. Já a segunda parte toma um rumo mais próximo ao delírio, conforme Manana se identifica com a história de uma mulher comum que se torna um monstro. Parte da força se perde, mas o trabalho de Urushadze se mantém interessante.


una especie de familia“Uma Espécie de Família”
[Una especie de familia, Argentina/Brazil/França/Polônia, 2017]
Coproduzido pela brasileira Bossa Nova Films, Uma Espécie de Família é o quinto longa-metragem do diretor argentino Diego Lerman, que integra o júri da Mostra deste ano. Rodado em regiões rurais de Missiones, norte da Argentina e fronteira com o Brasil, o filme é centrado em Malena, uma médica que quer adotar o filho de Marcela, mulher pobre na fase final da gravidez. O roteiro de Lerman e María Meira não oferece respostas rápidas, mas deixa claro, logo na primeira cena, que o acordo entre as duas é frágil e tenso. Malena passa por uma série de obstáculos para tentar fica com a criança, muitos deles ligados a uma rede corrupta e ilegal que envolve médicos, advogados e funcionários de cartório (acertadamente retratados de forma ambígua: querem ajudar, ganhar dinheiro ou um pouco dos dois?). Uma Espécie de Família levanta debates diversos, sobretudo em relação às questões morais que envolvem a adoção e sobre como as diferenças sociais interferem neste processo. Tais discussões são bem trabalhadas pelo roteiro, mas fortalecidas sobretudo pelo excelente trabalho das atrizes, a experiente Barbara Lennie, intérprete de Malena, e a novata Yanina Avila, que tem em Marcela seu primeiro papel no cinema. Nas cenas em que elas se encontram, o filme tem seus momentos mais marcantes.


visages villages“Visages, Villages”
[França, 2017]
A merecida homenagem à cineasta belga Agnès Varda inclui este que é seu filme mais recente, dirigido em parceria com o fotógrafo JR e exibido no Festival de Cannes. Neste documentário, a dupla une sua paixão pela imagem em uma viagem por vilarejos franceses a bordo de um caminhão fotográfico. A partir de encontros com pessoas comuns – alguns aleatórios, outros planejados – eles contam histórias de personagens da vida real, tiram seus retratos e os compartilham em espaços públicos. Acompanhar a jornada dos dois talentosos artistas é extremamente prazeroso, tanto pelas reflexões e lembranças divididas por eles e pelos anônimos que encontram pelo caminho, quanto pelo carisma insuperável de Varda (este vídeo como exemplo), que aos 89 anos mantém um olhar interessado e fundamental para o cinema.

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