Com “Capitã Marvel”, maior universo do HQ no cinema ganha mulher protagonista

O chamado Universo Cinematográfico Marvel tem apenas 11 anos de história, mas os lançamentos são tantos e ganham repercussão tão monumental que, de certa forma, é como se os filmes baseados nos quadrinhos da Marvel Comics sempre tivessem existido. Quem não é versado neste mundo (eu, por exemplo) não sabe ao certo quantos Homens de Ferro, Homens-Aranha e Homens-Formiga já ganharam as telas, mas é fácil nomear os títulos do estúdio que colocaram uma heroína, e não um herói, no centro da história.

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Na verdade não há títulos, e sim título – no singular mesmo. Capitã Marvel, que estreia nesta quinta-feira (7) no Brasil, é o vigésimo primeiro filme da Marvel, mas o primeiro estrelado por uma mulher. É, também, o primeiro a ser dirigido por uma cineasta do sexo feminino e o segundo a creditar mulheres entre os roteiristas. 

Muitos dos principais envolvidos (e envolvidas) neste marco do cinema comercial americano tinham pouca experiência com filmes arrasa-quarteirão como os da Marvel. A protagonista, Brie Larson, ganhou o Oscar pelo indie O Quarto de Jack (2015); os diretores, Anna Boden e Ryan Fleck, tinham no currículo produções como Sugar (2008), Se Enlouquecer não se Apaixone (2010) e Febre do Mississippi (2015); autora do roteiro ao lado da dupla, Geneva Robertson-Dworet foi contratada após um único trabalho, Tomb Raider: A Origem (2018).

Já a personagem tem longa trajetória com a Marvel: a história em quadrinhos foi publicada pela primeira vez nos anos 1960 e inicialmente era sobre um homem (em inglês, “captain” atende a ambos). A partir daí, foram várias versões, incluindo a criada em 2012 por Kelly Sue DeConnick, que serve de inspiração para o filme.

Nesta história de origem, a própria Capitã Marvel precisa descobrir quem é – e isso significa que quase tudo o que se fale sobre a trama do longa pode ser spoiler. De forma resumida, o filme é ambientado em 1995, quando uma grande guerra travada entre dois povos alienígenas, os Kree e os Skrulls, acaba chegando à Terra. Neste momento, a personagem de Brie Larson atende pelo nome de Vers, é uma poderosa guerreira Kree e não se lembra de quase nada sobre seu passado. Ela sente, porém, que aquela não é sua primeira passagem pela Terra e entende que sua conexão com o planeta tem alguma relação com o próprio conflito que abala a galáxia.

Tudo isso é apresentado de forma um tanto quanto frenética no primeiro ato do filme, quase um trailer estendido no qual teasers de imagens, tramas e personagens se sucedem sem que sejam de fato desenvolvidas. Distraia-se um pouco e talvez você perca, por exemplo, a breve passagem das atrizes McKenna Grace e London Fuller como a versão de Brie Larson aos 13 e aos seis anos, respectivamente.

Mais acostumada a tramas simples e centradas em diálogos, a dupla de diretores parece perdida diante da enorme tarefa que têm nas mãos. Boden e Fleck encontram seu rumo no segundo ato, quando Vers chega à Terra e encontra um parceiro em um conhecido personagem de outros filmes da Marvel: Nick Fury. Graças aos efeitos visuais, o ator Samuel L. Jackson aparece 20 anos mais novo, ainda sem tapa-olho e antes de unir os Vingadores. Desta vez, Fury tem grande destaque, tanto em tempo de cena quanto na posição de alívio cômico ao lado do gato Goose, que tem tudo para ser um dos personagens favoritos do público.

Imagem do set de “Capitã Marvel”

Há outros coadjuvantes importantes, incluindo os ótimos Annette Bening e Ben Mendelsohn, além de Jude Law, Lashana Lynch e Gemma Chan. Liderando o elenco, Larson tem boa e sólida atuação: sua Capitã Marvel é forte (a atriz treinou pesado durante nove meses), centrada e em geral séria. Uma cena em que um motoqueiro cobra um sorriso de Vers parece ter antecipado as reações provocadas pela divulgação do trailer, quando comentaristas (a maioria homens) da internet reclamaram que a heroína precisava “sorrir mais”. Mais recentemente, o editor-chefe de um site de cinema brasileiro causou polêmica no Twitter ao dizer, após assistir ao filme, que a atriz passava o tempo todo com “cara de bunda” e de “não quero estar aqui”.

A resistência a personagens femininas “não simpáticas” não é novidade, mas aqui o caso é especialmente interessante: a personagem não fez nada de condenável nem atentou contra qualquer regra de boa conduta ou educação, apenas cometeu o crime de não ser charmosa e sorridente enquanto salva o mundo (aliás, a galáxia). Mas por que teria de ser? Por que a Capitã Marvel de Brie Larson teria necessariamente de ter o mesmo carisma da Mulher-Maravilha de Gal Gadot? Se as mulheres da vida real são diferentes entre si em personalidade, atitude e aspirações, porque as heroínas do cinema não deveriam refletir tal diversidade?

Larson de fato não ilumina a tela como Gadot, mas por outro lado nos poupa da conversa mole sobre amor que enfraquece o terço final de Mulher-Maravilha (uma das grandes sacadas de Capitã Marvel, aliás, é não inserir nenhum par romântico). Há que se pesar, também, o natural maior impacto do filme que chegou às salas primeiro. Depois do longa de Patty Jenkins, bem como de Pantera Negra (2018), a plateia está um pouco menos desacostumada a ver mulheres assumindo papéis de destaque em produções inspiradas em quadrinhos. A desigualdade continua, mas a sensação de ineditismo já não é exatamente a mesma.

Aliás, a essa altura da obsessão de Hollywood por quadrinhos, o que há de realmente inédito em qualquer filme de heroína ou herói? Capitã Marvel tem tudo que têm os demais: perseguições de carro, combates no espaço, cenas de luta, coisas explodindo, surpresas nem tão surpreendentes assim. Tem, até, um diferencial: a ambientação nos anos 1990, que garante a dose de nostalgia e uma divertida trilha sonora que vai de Garbage e No Doubt a TLC e Des’ree. Ou seja: missão cumprida.

*

Este filme passa no teste de Bechdel-Wallace. Clique para saber mais.“Capitã Marvel”
[Captain Marvel, EUA, 2019]
Direção: Anna Boden e Ryan Fleck
Elenco: Brie Larson, Samuel L. Jackson, Lashana Lynch, Ben Mendelsohn.
Duração: 124 minutos


Luísa Pécora é jornalista, criadora e editora do Mulher no Cinema

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