Tem grande poder de síntese a montagem que abre A Substância, filme da francesa Coralie Fargeat que estreia nesta quinta-feira (19) nos cinemas. Nela, uma estrela na Calçada da Fama é filmada de cima, em câmera estática, a partir do momento de sua instalação. Primeiro, vêm os flashes dos fotógrafos; depois, os flashes dos fãs. Aos poucos, o concreto começa a rachar e os transeuntes, a pisar sem olhar. Quando um hambúrguer cai no chão, a sequência se encerra, e todo o glamour de uma estrela é reduzido ao chão sujo de ketchup.
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É por esta montagem que Fargeat nos apresenta sua protagonista, Elisabeth Sparkle, uma atriz premiada que deixou de ser sensação conforme as rugas começaram a aparecer. Para se manter nos holofotes, ela passou a apresentar um programa de ginástica aos moldes do que Jane Fonda comandava na década de 1980. Mas agora Elisabeth chegou aos 50 anos, o que, para uma mulher (em Hollywood, mas não só), significa chegar ao fim.
É mais ou menos nesses termos que seu chefe anuncia sua demissão e a busca por uma substituta no mínimo duas décadas mais jovem. E para não deixar dúvida quanto à irreversível obsolescência de Elisabeth, um cartão de agradecimento enviado pela emissora coloca o prego no caixão: “Você foi incrível”.
Elisabeth, é claro, continua viva, mas não sabe como existir sem a fama e a beleza – ou melhor, sem atender e representar um ideal de beleza jovem, já que a personagem é interpretada pela atriz Demi Moore, uma mulher evidentemente bonita. Num momento de desespero, Elisabeth decide experimentar “a substância”, droga ilegal que replica células para criar uma versão melhor e mais jovem de quem a utiliza.
Uma injeção misteriosa faz com que as costas de Elisabeth se abram e de lá saia sua cópia, Sue, uma mulher de 20 e poucos anos e corpo perfeito interpretada por Margaret Qualley. As poucas instruções que acompanham “a substância” afirmam que as duas são a mesma pessoa e, por isso, não podem coexistir. Numa semana, Elisabeth vive sua vida e Sue fica desacordada no chão do banheiro; na semana seguinte, devem trocar de lugar.
De início, tudo corre bem. Sue se candidata para apresentar o programa que era de Elisabeth, consegue o emprego, alucina o dono da emissora e voa em direção ao estrelato. Não demora, porém, para que ela (e também Elisabeth, já que ambas são a mesma) comece a desrespeitar as regras do jogo, passando mais tempo “acordada” do que deveria. As consequências são irreversíveis, e ficam cada vez mais graves conforme o filme se encaminha para um final que eleva o body horror à máxima potência.
A Substância é, por definição, um filme de exagero, que rejeita a sutileza e abraça o mais é mais. Como em seu longa anterior, Vingança (2017), Fargeat aposta em uma estética altamente estilizada e utiliza os diferentes elementos cinematográficos – fotografia, figurino, direção de arte, design de som – para que toda cena seja visualmente marcante. Às vezes, o impacto é pela cor, como quando o casaco amarelo e a bolsa vermelha de Elisabeth contrastam com o cômodo inteiramente branco; às vezes, pela lente que distorce ambientes e personagens; e outras vezes, pelos close-ups que destacam partes do corpo, uma mosca dentro de um copo, camarões sendo mordidos com pressa ou agulhas entrando na pele. Como o som de cada ação – morder, engolir, cortar, costurar, injetar, arrancar – também ganha sua própria ênfase, mesmo quem fechar os olhos nas muitas cenas de gore ainda terá uma boa ideia do que está acontecendo.
Fargeat tem recursos imagéticos suficientes para prender a atenção do espectador, lançando uma nova cartada sempre que a história começa a tornar-se repetitiva. Há uma certa energia – uma certa raiva, eu diria – na direção da cineasta que mantém o filme vivo, e que é amplificada pela atuação de Demi Moore. A escalação da atriz, que também viu o estrelato desaparecer junto com a juventude, carrega um interessante elemento de metalinguagem, mas o que eleva seu trabalho é a completa entrega à proposta de Fargeat e a sede com a qual agarra o papel. Sem a intenção de desmerecer Qualley, também muito bem no filme, a presença de Moore em cena é tão forte que A Substância é sempre mais instigante nas semanas de Elisabeth do que nas de Sue.
Ao mesmo tempo, Moore atua dentro das limitações de uma personagem que o espectador nunca chega a de fato conhecer. Quase tudo o que sabemos sobre Elisabeth vem da bem sacada montagem na Calçada da Fama – mas quem é ela realmente? Do que gosta de fazer? Que tipo de carreira teve? Que tipo de carreira gostaria de ter tido? Quais eram seus sonhos? Do que teve de abrir mão? Por que vive tão sozinha? Entende-se que a fama ocupou espaço central em sua vida, mas mesmo celebridades profissionais – as Kardashians, por exemplo – podem ter família, parceiros, amigos. Onde estão eles? Sem que estas ou outras perguntas sejam respondidas, Elisabeth não se constrói como mulher real e específica, apenas como símbolo de todas as mulheres.
Esta certamente era a intenção de Fargeat, autora do roteiro premiado no Festival de Cannes, que usa tipos e caricaturas para criar uma fábula de horror. A Substância é uma sátira sobre o modo como o machismo e os padrões irreais de beleza colocam as mulheres não apenas em luta umas contra as outras, mas também contra si mesmas. Esta autobatalha é materializada pela guerra entre Elisabeth e Sue, enquanto o body horror representa as pequenas violências que as mulheres cometem contra seu corpo e sua saúde em nome da aparência.
Todas as personagens de A Substância servem a este comentário. Elisabeth simboliza as mulheres. Sue simboliza a fantasia masculina. O dono da emissora (não por acaso batizado de Harvey) simboliza os homens predadores no poder. O vizinho simboliza o homem medíocre que mal consegue articular duas palavras diante de uma mulher bonita, mas tem autoconfiança suficiente para achar que ela adoraria sair com ele.
Da mesma forma, a época em que o filme está ambientado se mantém vaga, aludindo ao presente, mas inserindo elementos que remetem a outro tempo. Esta indefinição sinaliza uma questão atemporal, mas também elimina a necessidade de se considerar o atual contexto de discussões sobre gênero em Hollywood. Em que pesem as desigualdades que sem dúvida permanecem, hoje uma artista como Elisabeth poderia, por exemplo, abrir uma produtora, criar o próprio programa, passar para o outro lado das câmeras ou reinventar-se como empreendedora. Ou ainda, tendo a oportunidade de voltar a ser jovem (na figura de Sue), estar mais atenta à necessidade de trilhar um caminho diferente daquele que a levou a recorrer à substância. Se seguisse qualquer destas linhas, porém, o filme complicaria a metáfora simples a partir da qual se constrói, e entraria no terreno da transformação, quando denunciar o problema parece ser seu maior interesse.
O caráter genérico de A Substância resulta em um filme divertido, mas superficial, que não aprofunda as boas ideias que tem nem sustenta os raros momentos de conexão verdadeira com a protagonista e os temas abordados. A despeito de todas as peripécias visuais e todo o sangue derramado, a sequência mais marcante de A Substância é aquela na qual Elisabeth se arruma para um encontro, talvez o único momento em que a personagem dá uma chance a si mesma e à possibilidade de seguir em frente. Toda vez em que está prestes a sair de casa, Elisabeth vê uma foto de Sue no outdoor em frente à janela e volta ao banheiro para reforçar a maquiagem, mudar o penteado ou disfarçar o decote do vestido. A cada nova ida ao espelho, as mãos esfregam o rosto com mais força e os gestos ficam mais violentos, escancarando sua insegurança e revelando a triste e monstruosa imagem de uma mulher condicionada a se odiar.
Luísa Pécora é jornalista e criadora do Mulher no Cinema